terça-feira, outubro 30, 2007

Where There’s A Will, There’s A Way

O poder é mesmo uma condição das mais atrativas. Quem o tem não deseja largá-lo, faz de tudo para mantê-lo. Acontece mundo a fora, em todos os países. Deve ser uma delícia ser presidente, um grande emprego, por sinal. Salário razoável, estabilidade renovada por mais um período, desde que a Constituição permita, e se não permitir sempre há a possibilidade de se alterá-la, mordomias, prestígio, um séqüito de empregados, e turismo, muito turismo. Não me venham dizer que é por patriotismo, altruísmo, ou qualquer outro "ismo", que o fulano decide se candidatar. Para acreditar nisso teria que ser mais jovem, ter um pouco mais de fé na condição humana, o que perdi, sabe-se lá quando, pelos caminhos que percorri.
Vejam o caso do Chávez. O desejo dele todos conhecemos, e onde há vontade, há um jeito. Caminha para, sem o menor acanhamento, perpetuar-se. Bom para ele.
Na vizinha Argentina, e não me venham dizer que implico com os hermanos, aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Adotaram, porém, uma solução caseira. Saiu o marido, entrou a patroa: Madame Cristina Fernández Kirchner. As despesas continuarão sendo pagas pelas antigas vias, o salário idêntico, prestígio à família garantido, nem foi preciso mexer na Carta Máxima daquele país, talvez o casal tenha um pouco mais de pudor que o coronel venezuelano. E fato parecido, anos depois, está em vias de ocorrer nos States, onde a senhora Clinton poderá eleger-se matando as saudades do poder, e da Casa Branca. Quem sabe não arranja o equivalente masculino da Monica Lewinski e devolve o par de chifres ao velho Bill?
Dia desses, no segundo aniversário do Lula, ele tem dois e comemora ambos, coisa de gente feliz, já que um só, no meu caso, é de amargar, lançaram, ou deram-lhe, uma nova candidatura, a terceira, embrulhadinha pra presente. É claro que ele negou, disse que não seria bom para a nação, afirmou todas as vantagens da alternância política. Só que ele era contra a reeleição e está no segundo mandato. Ser presidente deve viciar. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Como sei que todos adoram o currículo dele, não cansando de elogiar o histórico desse operário vindo de Pernambuco, e como respeito muito esse bonito percurso, morro de medo que seja conspurcado. Lanço então, com toda humildade, uma candidatura alternativa: a da Galega. Acho que poderíamos, com algumas vantagens, eleger dona Marisa Letícia Lula da Silva.

sexta-feira, outubro 26, 2007

In A Bad Temper

Tenho andado irritado. Nem sempre a vida caminha por trajetórias adeqüadas. O destino, muitas vezes, oferece-nos antipatia quando ansiamos por carinho. E é justamente essa percepção, a de pouca, ou quase nenhuma, possibilidade de escolha, o motivo dessa depressão mais ou menos profunda.
Trabalhei durante muitos anos na avenida Paulista. Quase três décadas, para ser mais exato. Nunca fui, e não digo isso com orgulho, sujeito maleável, afeito a mudanças. Tenho enorme tendência em criar raízes. Em pouco tempo conheço as pessoas, converso com elas, estabeleço rotinas. Dificilmente altero itinerários. Ando por ruas conhecidas, almoço em lugares confiáveis, sou um pouco desconfiado. Arredio, com certeza.
Desde segunda-feira sinto-me rebaixado, tentando conviver com um novo bairro, sabores e temperos diferentes, vizinho do shopping West Plaza. Meus empregadores decidiram que aqui seria nosso endereço daqui em diante. Paciência...
Retorno ao meu antigo local. Observando todas aquelas pessoas que por ali transitam, perto do MASP e do parque Trianon, meus olhos descansam. Sinto, porém, enorme inveja. Gostaria demais de ter a felicidade daqueles que por ali vivem, a mesma que me acompanhou desde muito jovem, perdida.
Um poeta livre, vestido sobriamente, com seus livros debaixo do braço, aproxima-se interrompendo meu caminho de reencontro. Dirige-me a palavra:
- Gosta de poesia?
- Nem de prosa - respondo.
E me afasto azedo, emputecido.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Missing Bahia!

Recebo um telefonema de minha tia Luísa. Pergunta se li o artigo do João Ubaldo que saiu no domingo. Ao saber que não, dana-se:
- Como não leu? O Estadão de domingo deveria ser comprado sempre, vale pelas crônicas dele.
Explico que concordo, mas não tive tempo.
Divido com vocês o texto. Humor característico que me fez cair uma vez de uma cadeira, em Salvador, de tanto que ri. Poucos têm um riso tão contagiante como João Ubaldo. Quando se juntava com o saudoso artista plástico Calasans Neto, enfileirando piadas, em uma espécie de competição doida e divertida, não havia que conseguisse ficar sério.
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Gil, sem Jorge você talvez fosse só uma hipótese
João Ubaldo Ribeiro (Estadão - 14/10/2007)
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*****Acho que tenho de dar umas explicações antes de começar, principalmente para os que não gostam muito de baianos. O que vou escrever pode parecer até uma carta — e, de certa forma, é —, mas uma carta de interesse público. E interesse de todo o Brasil, razão por que não merece ser tida como apenas um papo da baianada, que devia ficar circunscrito a ela, sem chatear quem não tem nada com isso. Mas podem crer que todos os brasileiros têm alguma coisa com isso, até mesmo os que não a enxerguem ou admitam.
*****O feriado me obrigou a escrever com mais antecipação e não sei se, nos dias decorridos até hoje, o ministro Gil se manifestou sobre o problema. E, se se manifestou, não o fez através daqueles arabescos verbais abstratos e sonorosos em que adeja sua mente de artista, às vezes bonitos de ouvir, mas de árdua decifração, pelo menos para as limitações de meu entendimento. Se falou o que pelo menos eu esperava que ele falasse, tal como o resto da baianada, alvíssaras, mas, mesmo assim, o que vai dito abaixo precisa ser dito.
*****Lembrei de Glauber, uma vez, na casa dele, em Sintra, Portugal. Entrei e ele estava furioso com alguma coisa, nunca vou saber o quê. Me encarou carrancudo e esbravejou:
****— Vou telefonar para o ministro da Cultura! Ele é ministro da Cultura, eu sou cultura e ele tem que me ministeriar!
*****Nada mais lógica e claramente expresso. E agora Gil tinha que estar ministeriando Jorge Amado, mas, que eu saiba, não está. E com isso se arrisca a entrar para a História como o ministro da Cultura em cuja gestão o insubstituível acervo de Jorge Amado foi tirado da Bahia e entregue à Universidade de Harvard. Ou seja, o Brasil não queria manter o acervo de um de seus filhos mais ilustres, um dos escritores mais importantes do mundo (sei que há quem discorda, mas para mim quem discorda é burro e, se quiser, pode dizer que o burro sou eu) e um dos vultos mais importantes de nossa História. Ele gostava muito da gente, os “meninos” de então. Não esqueço do olhar dele, todo ancho, um sorrisão que quase lhe tomava a cara inteira, nos mirando como um patriarca orgulhoso. Não houve um de nós que ele não incentivasse, de quem não exigisse trabalho, sempre dando um jeito de botar o nome da gente em tudo quanto era entrevista que dava, sempre dando um conselho sábio. Gil deve ter muitas lembranças disso, até da casa do Rio Vermelho, hoje quase uma tapera — e foi lá, no chão de seu quintal, que Jorge quis que lhe derramassem as cinzas, como quis que seu tesouro ficasse sempre com seu povo e sua terra.
*****E Gil sabe também que, pouco depois de ele e eu nascermos, Jorge Amado era constituinte e, embora ateu como sempre foi, fez inserir na Constituição um dispositivo que garantia a liberdade de culto. Antes disso, a vastíssima população de origem africana da Bahia era obrigada à humilhação de ter que tirar licença na polícia para praticar suas religiões e, ainda assim, terreiros e casas de culto eram invadidos pela polícia, com destruição de casas e de objetos sagrados. Jorge não só alterou a Constituição como foi à luta. Não foi à luta somente criando heróis e protagonistas negros, antes quase inteiramente ignorados, mas militando, com amigos também negros, pela efetiva concretização da liberdade de culto e a restauração da dignidade das religiões de origem africana. Não foi demagogia nem vontade de aparecer que fez com que o honrassem com títulos elevados no mundo do candomblé. Foi por amizade e gratidão a um permanente companheiro de luta.
*****Gil sabe que a principal razão por que muita gente, aqui e no exterior, quer conhecer a Bahia não é praia. Quem quiser praia, só não tem praia em Minas. Em compensação tem muito barroco e quem quer ver barroco pode se fartar em Minas. Quem quiser igreja idem. O que distingue a Bahia é sua identidade, sua fala, o jeito de seu povo, sua mística, sua sensualidade espontânea, sua mitologia. Dirá um dos sabidos que por aí abundam: se Jorge não desse esse e outros passos, outro daria. Talvez, mas acontece que foi Jorge quem deu. E foi ele também, Gil se lembra, que, junto com Érico Veríssimo, brecou a decisão do governo militar de impor censura prévia aos livros. Se fizerem isso, disseram os dois grandes homens, não escrevemos mais uma linha.
*****Não sei se a cegueira e a surdez seletiva do chefe de Gil são contagiosas, mas parece que ele não sabe nem viu nada. E esqueceu que, sem baianos como Jorge Amado e Dorival Caymmi, a Bahia podia perfeitamente ser mais uma cidade portuária e de negócios, com a população majoritária ressentida ou francamente revoltada e racista. De novo pode vir o blablablá de que, se não fossem eles, seriam outros. Mas, de novo, acontece que foram eles.
*****Ou seja, sem Jorge talvez a Bahia fosse muito diferente do que é hoje. Talvez a arte não fosse a mesma, talvez Gil não tivesse régua e compasso (que podem estar precisando de manutenção, isso acontece), talvez seu talento não pudesse desabrochar, nem tivesse os ombros mais antigos em que todo talento novo se apóia. Era capaz até de surgir um sociólogo levantando a hipótese de que, se aquela sociedade não houvesse se tornado tão materialista, mercantilista e dividida, poderiam ter surgido artistas com o perfil de Gil. Foi isso que eu quis dizer, quando afirmei que Gil (não faça isso, Gil, não seja o ministro da Cultura sob cuja gestão o Brasil efetuou uma bela troca com Harvard, ela com os 250 mil itens do acervo de Jorge e nós com Mangabeira
Unger) podia hoje não passar de uma hipótese. E eu também, claro. Aliás, no meu caso, nem mesmo chegar a hipótese, praticante que sou do mesmo ofício que Jorge. Mas não somos hipóteses, somos quem somos, Gil, é claro, muito mais belo e brilhoso. Só tenho a meu favor estar cumprindo minha obrigação e ele não.

quinta-feira, outubro 11, 2007

First Kiss

Férias em Teresópolis. Os sete primos reunidos: Rafael, Rodrigo, Marcelo, Ianê, Lúcia, Camila e Fabiana. O Teresúvio cuspindo fumaça. A fogueirinha sobre o morro virava o Vesúvio de Teresópolis. Terror de Rodrigo que acreditava. Diversão dos meninos cheios de imaginação.
Camila era puro teatro. Um acidente dera-lhe a oportunidade de ficar um bom tempo sobre o palco.
Certa tarde o frio apertou. O inverno, mês de julho, parecia que tinha chegado de vez. Resolveram acender a lareira. Procuraram madeira seca, jornal e álcool. A chama começou preguiçosa mas logo o fogo pegou forte. Labaredas estalando alegres. Foi quando começaram a ouvir pios de passarinho. Aflitos.
*
Para encurtar a história, tinham feito o ninho na chaminé. O calor destruiu a casinha deles. Dois filhotinhos caíram no meio do braseiro. Morreram. A tristeza foi geral. Difícil não chorar aquela catástrofe.
Camila viu o palco armado. Começou culpando Rafael e Ianê, os donos da idéia do aquecimento. Feito louca gritava pelo quintal, mãos na cabeça, aos soluços:
- Assassinos! Assassinos de avezinhas!
Preparou enterro com missa e tudo. Debaixo da jaboticabeira, perto da piscina. Os dois bichinhos, ou o que se presumia ter sobrado deles, em duas caixinhas de fósforos. Marcelo, de olho na prima, querendo agradá-la, fazendo as vezes do padre.
Camila era de tal maneira afetada na interpretação, que todos acabaram rindo. Pena. Os pequenos defuntos não mereciam tão má atriz.
Foi por essa época o primeiro beijo de Rafael. Lamentável, embora merecesse registro. Ganhou a figurinha difícil, completou o álbum e ficou danado com a prima, brinde da disputa. Quem? Camila, claro. Deveriam ter combinado a duração do sacrifício. Quando, como um raio, pensou ter-se livrado daquela palhaçada, viu negado o Gilmar, goleiro do Santos, figurinha que não tinha. Só demorando mais. Para evitar discussão, bobo, aceitou. A menina agarrou-o então com unhas, enganchando-se nos seus dentes, babando descontrolada em sua boca. Assustado, Rafael saiu correndo. Detestava que o cuspissem.
O segundo foi bom. O menino andava de asa arrastada por Ianê. As férias tinham aproximado os dois primos mais velhos. Acertaram um cineminha no centro. Uma fita, naquele tempo dizia-se fita, do Tarzan. Original. Com o Johnny Weissmuller e tudo. Nem é preciso dizer que Rafael esqueceu da garota ao lado. Lá pelo quinto cutucão, desviou contrafeito a atenção da tela. Que olhos! Colaram então os lábios. Prevenido, agora experiente, Rafael fechou bem a boca.
*
Com o terceiro beijo veio a técnica. Margarida, a professora, empregada nova da avó, quase provocou uma revolução na família. Ensinou-o pelo método da insistência. Sedutora, convenceu rapidamente o menino a esquecer, às vezes, de jogar bola . Viviam atracando-se. Beijos molhados. Mordidinhas gostosas. Línguas nervosas.
Rapidamente o filho mais velho de Marina perdeu a conta. Deve ter completado o milésimo beijo na mesma época em que Pelé fez o milésimo gol em Andrada, goleiro do Vasco.
A matemática oscular é meio atrapalhada. Sempre que se fala em primeiro beijo, Rafael lembra dos três primeiros. Para ele formam uma unidade. Os lábios de Camila, Ianê e Margarida somam-se. Tornam-se um só. Surge então, o primeiro beijo. Com toda emoção que a gente não esquece.

segunda-feira, outubro 08, 2007

Child Prodigy

A tarde de sexta-feira chegou morna prometendo um belo final de semana. No pátio do jardim da infância os pequenos brincam afogueados, gastando o que resta de energia, aguardando que seus familiares os venham buscar. Assim que vê a mãe estacionar o carro, o menino corre disparado em sua direção. Atropelando as palavras, quase sem fôlego, pede:
- O Pedrinho pode ir dormir lá em casa?
Ela, ainda pouco acostumada com aquela fase recém inaugurada, o filho mais novo começando a criar asas próprias, carinhosamente, abrandando a voz, diz:
- Precisamos perguntar aos pais dele.
O menino pára, olhos brilhando, rostinho corado, permanecendo um tempo indeciso como se não acreditasse no que ouviu, observa curioso o rosto materno procurando algum sinal de pilhéria, eleva a vozinha esganiçada, contestando:
- Mas mãe, o Pedrinho só tem um pai!

quinta-feira, outubro 04, 2007

Pequena Dúvida

- Por que os reis são magros?
- Que reis, menino?
- No reino deles não tem comida?
- Do que você está falando, meu filho?
- Daqueles reis que visitaram o Jesus bebê, os três reis magros.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Há Bens Que Vêm Para O Mal

Pendurado em meio ao aglomerado de pessoas no vagão do metrô ele segue feliz. Pode sentir os músculos trabalhados pela manhã na academia. O trapézio e o deltóide estão levemente doloridos, avisando ao corpo que estão ali, saudáveis. Respira fundo, estufa o peito, sente-se bem, vivo.
Sentado à sua frente um rapaz, ipod nos ouvidos, balança-se em cadência dolente, cenho franzido, o som devia ser triste. Tem os cabelos revoltos, espetados, reflexos dourados brilham emergindo de sua cabeça. Mochila apoiada no chão entre os joelhos rasgados das calças jeans.
Os dois olhares, abaixando-se e elevando-se, cruzam-se num relance. O menino, educado, imediatamente faz menção de levantar-se, oferecendo o lugar:
- O senhor quer sentar?
Ele nega, embaraçado. Não esperava o oferecimento.
- Vou descer no próximo, explica.
Sorriem.
O auto-falante anuncia o destino. O trem dá um tranco, reduzindo a velocidade. Ele sente o ombro, faz uma careta. Na estação seguinte dirige-se à porta encurvado, lentamente, sentindo-se velho.