quinta-feira, dezembro 23, 2010

Suíte de Natal

Dezembro. A tarde de sexta-feira chegou morna prometendo um belo final de semana. No quintal o menino brinca afogueado, gastando o que resta de energia, aguardando que o venham buscar. Assim que vê a mãe estacionar o carro, corre disparado em sua direção. Atropelando as palavras, quase sem fôlego, pede:
- O Pedrinho pode ir dormir lá em casa?
Ela, ainda pouco acostumada com aquela fase recém inaugurada, o filho mais novo começando a criar asas próprias, carinhosamente, abrandando a voz, diz:
- Precisamos perguntar aos pais dele.
O menino para, olhos brilhando, rostinho corado, permanecendo um tempo indeciso como se não acreditasse no que ouviu, observa curioso o rosto materno procurando algum sinal de pilhéria, eleva a vozinha esganiçada, contestando:
- Mas mãe, o Pedrinho só tem um pai!
***
O menino gostava de presépios. Curiosa a disposição dos bichos ao redor do berço. Vaquinha, carneiro, jumento e até uma galinha com a ninhada. O bebê Jesus com as pernas para cima, de fralda. Maria e José. O rosto do Salvador tranqüilo. Corado. Os três reis “magros”. Gargalhada geral. Não eram magros. A mãe abraçando-o comovida. Felicidade. Magos. Calor bom de Natal.
***
Vendedor no portão, gorro vermelho com pompom branco. É quase Natal. Limpa as caspas do ombro em um gesto amplo, conserta o nó da gravata, apóia a mala no chão, enxuga o suor da testa com o lenço e toca a campainha.
A menina larga o velocípede no chão do quintal, vem lá de trás correndo, curiosa, ver quem é. Chega arfando, demora para recuperar o fôlego. Ele:
- Sua mãe está?
Ela, sorrindo marota, baixando a voz:
- Mamãe está na terapia.
***
A menina entrou na sala correndo. As luzes na árvore apagavam e acendiam, monotonamente. Gotinhas de suor no buço. Fazia calor, quase quarenta graus. Parou de repente olhando o crucifixo na parede. Tinha que se comportar para ganhar presentes. Sentou quietinha ajeitando o vestido, compenetrada. As mãozinhas no joelho. Ao primo que não parava:
- Fique quieto, senão Deus mastiga!
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A criança levantou os olhos. No alto da árvore, lá na pontinha, uma estrela brilhando. Último enfeite colorido. Maior. Quase no céu que era o teto da sala. Será que podia tapar a visão e fazer um desejo?
Um movimento de cabeça e o ornamento pareceu tombar, cadente. Fez o pedido bem rápido. Quase num susto.
Ganhou o autorama.
***
Missa do Galo. A igreja está cheia.
- Ave Maria, cheia de graça, senhor é convosco...
- Mãe!
- Bendita sois vós entre as mulheres...
- Manhê!
- Não percebe que estou rezando?
- O que é convosco?
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Véspera de Natal. Os meninos foram dormir preocupados. No filme, Papai Noel entrava pela chaminé. Que chaminé?
Não adiantou a mãe explicar que o velhinho dava um jeito.
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Sentiu pena do homem gordo vestindo aquelas roupas quentes. Tudo vermelho, inclusive o rosto. Devia estar sentindo muito calor. O que se via atrás dos cabelos e barba brancos estava coberto de suor. Não era um olhar feliz. A loja morna e abafada.
Ficou inseguro quanto aos presentes que pediu.
***
O primo insiste que Papai Noel é invenção. Fantasia. Coisa de criança. O menino altera-se. “Diabo de garoto burro!”. Nem parece mais velho. Busca ansioso o apoio do tio. “Não é verdade que existe?”. Ele apenas sorri.
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Amigo secreto. Os braços do pinheiro são de plástico. Flocos de algodão. As luzes piscando hipnotizam. Grande é o sono. Castanhas, nozes e frutas cristalizadas. As pessoas passam. O tempo também.

terça-feira, novembro 02, 2010

Sakineh Mohammadi Ashtiani

Amanhã, no Irã, apedrejarão Sakineh Mohammadi Ashtiani. Tentarão acertar o seu rosto tendo a cabeça como alvo. A primeira pedra, quem sabe, atingirá o nariz provocando imensa dor. Seus olhos se encherão de lágrimas e de susto. O gesto natural e instintivo de proteger-se será impedido. Estará enterrada com as mãos presas. A segunda, pode ser, passará de raspão e abrirá um corte em sua orelha, oferecendo-lhe um brinco de sangue. Uma outra irá ferir-lhe a testa. Certeiros arremeços arrancar-lhe-ão dentes que ficarão soltos, brincando com a língua, perdidos e tristes na boca amarga. Suas duas vistas, então caladas e vazias, já não mais poderão enchergar corpos masculinos. Nunca. Em seguida, confusa e desesperada de medo, respirando aos trancos o ar que ventila grosso e salgado os pulmões apavorados, ouvirá um baque surdo e distante. Coração pulsando nas têmporas. Um peso áspero e pontudo afundará sua garganta. E o choro engasgado borbulhará gotinhas vermelhas delicadas num chiado estranho de panela de pressão. As próximas pedras já não serão sentidas. Embalarão sono profundo e dormente, lânguido, quase sonho. Alá, meu bom Alá.

domingo, outubro 31, 2010

Papai Sabetudo

Acabo de ver o Lula defendendo o palhaço Tiririca na Internet. Embora seja uma das raras vezes em que concordei com o conteúdo de sua fala, fiquei ainda assim pouco confortável. Talvez pela forma com que ele invariavelmente se manifesta. Entre outras coisas afirmou ser cretinice o que estão fazendo com o sujeito. Acho a palavra um pouco forte, inadequada para um estadista. Além disso, o atual presidente coloca-se sempre irritado, como se as perguntas dos jornalistas fossem estúpidas, fazendo muito favor em responder aos dispostos a usufruir de sua santa sapiência. Ele me lembra um personagem de minha infância: o Papai Sabetudo. Pois é, mas como ia dizendo, assisti o filho de Dona Lindu defendendo o palhaço Tiririca. Incrível como esse negócio de corporativismo funciona.

sábado, outubro 23, 2010

A Criatura

Só falta mais uma semaninha. Se por um lado terei a alegria de ficar livre do criador, por outro, muito provavelmente, terei que engolir a criatura. São os ossos da democracia. O problema é que ultimamente, já lá se vão oito anos, tenho engolido muito osso. Fica para mim um consolo até certo ponto grande: o de ser minoria. Sempre tive simpatia pelas minorias. Desde Nelson Rodrigues sei que a unanimidade é burra. Mas deixa eu meter a viola no saco e calar a minha boca. Depois sobra alguma coisa na minha testa, vão dizer que é bolinha de papel, sempre dão um jeitinho de virarem o jogo. Desde os dólares na cueca essa turma se especializou em ilusionismo. Verdadeiros David Copperfields. E enquanto isso os nossos descamisados, bolsas família a tiracolo, aplaudem as bravatas do palhaço vestido de vermelho e vão às urnas onde compraram os ingressos do circo em que vivem. Estão felizes. O gigante pela própria natureza vai bem obrigado e já não dorme em berço esplêndido. Vocês querem bacalhau?

segunda-feira, outubro 04, 2010

Ufa!

Ufa! Podemos respirar, o jogo ainda não está perdido, fomos para o segundo turno. Nele começa tudo novamente. Bacana ver o Lula afastado de Dilma na derrota, visivelmente não queria respingos. É na crise que a verdadeira personalidade das pessoas aparece. Novas lideranças surgiram. Marina Silva destaca-se com montanhas de votos. Ela merece, tem uma história bonita. Aos quatorze anos era analfabeta. Hoje é uma pessoa culta, bem articulada, que se esforçou muito para chegar aonde está. Prefiro gente assim. Mostra aos inimigos da educação que é possível recuperar-se o tempo perdido. O Aloysio Nunes é outra referência que desponta no PSDB. Fazia tempo que o partido não via surgir em seus quadros alguém que pudesse trazer alternativas competitivas. Com o Alckmin eleito, a máquina paulista estará disponível para ajudar o Serra. Muito bom ver o Mercadante derrotado. Agora é trabalhar sério, buscar a maioria dos votos verdes que pertence aos tucanos, botar o Aécio para trabalhar, e encerrar o pesadelo que vivemos nos últimos oito anos. É claro que a diferença ainda é grande, e que a possibilidade de a candidata oficial ganhar enorme, mas não custa nada sonhar. Hoje acordei muito feliz.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Se As Eleições Fossem Na USP

Ouvi ontem no rádio do carro os resultados de mais uma pesquisa IBOPE. Não guardei os números, até por não prestar muita atenção neles. Mas o resutado me chamou a atenção. Se o Brasil fosse a USP - pena que não somos - a Marina Silva estaria eleita. Em segundo lugar viria o Serra e a Dilma apenas em terceiro. Embora vote no Serra, escolho sempre quem tem mais chances de impedir o mal pior, entendo com muita simpatia a opção dos estudantes da maior universidade do país. Quando se verifica que os dois candidatos principais não apresentaram, por razões diferentes, seu programa de governo, é de se estranhar que estejam tão bem posicionados. A Dilma teve o seu plano vetado pelo PMDB que o considerou muito à esquerda - já estão mandando antes de assumirem - e o Serra, por sua vez, por ser centralizador demais, preferiu não ter de submeter suas intenções ao restante dos tucanos. Sempre muito cético com relação ao futuro de nosso país, e nunca raivoso como alugumas pessoas acham que sou, acredito em um futuro melhor se, e apenas se, um dia investirem em educação.

quinta-feira, setembro 09, 2010

Eleições II

Eu estou convencido - também sou capaz de me convencer - que não vivemos uma democracia adequada. Aliás, considero que estamos muito longe de viver um processo de escolha de nossos representantes minimamente conveniente. Enquanto tivermos grupos de pesquisa divulgando estatísticas, e ranqueando os candidatos durante todo o processo eletivo, o resultado estará amplamente comprometido. Não basta fechar as torneiras numéricas apenas nas vésperas das eleições. Elas influenciam, ajudam as pessoas a decidirem, criam falsas expectativas. Infelizmente, muitos ainda preferem votar com a maioria, enxergam a coisa toda como um jogo em que precisam sair vitoriosos. A questão se agrava quando pensamos na fragilidade ética de nossas instituições. Elas facilmente são corrompidas, a possibilidade de manipulação de dados é sempre muito concreta. A única forma de garantirmos isenção e lisura é proibindo todo e qualquer anúncio de posições de candidatos desde o início, até o conhecimento do resultado final. Já li a respeito de trapalhadas realizadas pelo IBOPE, que partidos pagariam para verem seus quadros melhor posicionados, que os institutos procuram agradar aos seus clientes da melhor maneira possível. Basicamente há uma boa margem de manobra já que o período eleitoral é longo e só há necessidade de exatidão naquilo que os jornais publicam nas vésperas de irmos às urnas. Não adianta sermos adiantados em termos de tecnologia, proclamarmos os vencedores num piscar de olhos, se o STE ainda não percebeu - ou será apenas mais conveniente? - que eleição é uma coisa muito séria, diferente das apostas que o povo faz na Megasena.