Aos quatorze às vezes sentia-me estranho. Sem saber por que surgia uma vontade enorme de estar sozinho. Recolhia-me.
O quarto era grande. Um retângulo comprido dividido em dois ambientes. Em um deles duas camas com os respectivos criados-mudos; ao pé delas, estantes conjugadas com escrivaninhas onde meu irmão e eu estudávamos. No outro, um sofá-cama forrado com tecido xadrez, a cor vermelha predominando. Armários embutidos ocupando toda uma parede.
Fechando lentamente as janelas, observava a casa defronte tentando ver as irmãs gaúchas. Um aceno que fosse me encheria de esperanças. Eu achava a loirinha muito simpática. A morena, mais velha, cheia de charme. Aquele jeitinho de falar, cheio de tus e bás, mexia comigo. Andava louco para arranjar namorada.
Mergulhava na escuridão. Punha um long-play na vitrola e deitava com a barriga para cima, olhando o teto com os olhos fechados. O primeiro disco de Maria Bethânia era o mais ouvido. Lançado em 1965, três anos depois continuava me fazendo companhia. Um pouco gasto, começando a chiar sob a agulha, ainda trazia inspiração. As letras das músicas acompanhando os sonhos, ajudando, alimentando a fantasia.
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**********É de manhã
**********Vou buscar minha fulô
**********A barra do dia ê vem
**********O galo cocorocô
**********É de manhã
**********Vou buscar minha fulô
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Um dia ainda teria minha fulô. O galo levava ao sítio, interior. Caboclinha com vestido de chita.
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**********Meu desespero ninguém vê
**********Sou diplomado em matéria de sofrer
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Será que ninguém via? Assim escondido, trancado em plena tarde, era difícil. Mamãe aparecia para irritar-me. Tinha que levantar para abrir a porta.
- Está doente, filho? - pondo a mão em minha testa.
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**********Depois que aquela mulher
**********Me abandonou
**********Não sei porque
**********Minha vida desandou
**********Meu canário morreu
**********A roseira murchou
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**********Meu papagaio emudeceu
**********O cano d’água furou
**********E até o sol por pirraça
**********Invadiu minha vidraça
**********E o retrato dela desbotou
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Abandonado. Imaginava meu cachorro sem latir, o rabo entre as pernas, a mangueira do quintal vazando. As azaléias tristes, sem vida. O avô desbotado na sala de jantar. Periquito tombado na gaiola. As perninhas para cima. Tudo depois que Bruna foi embora.
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**********Você chegou no carnaval
**********Linda
**********Canção de amor no carnaval
**********Linda
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Bahia. Férias. Mortalha. Carnaval. Menina linda com nome complicado. Valdelice. Delícia. Valdelícia.
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**********Nunca mais vou querer o teu beijo,
**********Nunca mais
**********Nunca mais quero ter teu amor,
**********Nunca mais
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Sabia que era mentira. Se Luana me olhasse, se aproximasse os lábios, não agüentava. Beijava mesmo. Aqueles olhos de lua que clareavam o travesseiro. Nunca mais era para sempre. Não ia conseguir. Muito tempo. Bom de cantar, de dizer. Difícil com Luana. Impossível. Solidão doía.
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*********Na minha voz
*********Trago a noite e o mar
*********O meu canto é a luz
*********De um sol negro em dor
*********É o amor que morreu
*********Na noite do mar
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Murros na porta. Rogério gritando:
- O quarto também é meu!
Ainda teria meus próprios domínios. Sem ter que dividir com o irmão. Quem sabe aquele fedelho não morria? Entrava, apanhava alguma coisa, para logo sair. Só para irritar-me mais um pouquinho. Sempre irônico:
- Na fossa, boneca?
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**********Glória a Deus Senhor nas altura
**********E viva eu de amargura
**********Nas terra do meu senhor
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Olhando o pôster de Guevara, escondido na penumbra, esperava com fé dias melhores. Os ricos menos ricos, os pobres menos pobres. Sem perder a ternura. Liberdade, igualdade e fraternidade. Carcará!
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**********Anda, Luzia
**********Pega um pandeiro
**********Vem pro carnaval
**********Anda, Luzia
**********Que essa tristeza
**********Lhe faz muito mal
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Achava Luzia um nome lindo. Quando casasse teria duas filhas: Luzia e Laura. Luzia parecia acender a pessoa. Luzia iluminada. Laura de Laura Ingalls Wilder. A escritora preferida.
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**********Batuque é um privilégio
**********Ninguém aprende samba
**********No colégio
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Verdade. Oficialmente no colégio só tinha aprendido hinos. Adoravam hinos naquela época. Já podeis da pátria..., que entendia japonês. Sambar, só sambava nas notas. Às vezes dançava feio. Quando tocava Feiticeira, acabava chorando. A história da moça que adormece ninando a bonequinha e acorda para vê-la no chão quebrada, separada em mil pedaços. Dito assim parecia bobagem. Não era.
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*********O samba é a corda e eu sou a caçamba
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Só muito mais tarde fui entender o sentido dos versos. Ouvi dizerem de minha amizade com o Rafaelli: "Onde vai a corda, vai a caçamba". Entendi o sentido. Que caçamba era um balde para tirar áqua de poço, só descobri adulto.
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*********Mora na filosofia
*********Pra que rimar amor e dor
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O amor como um fogo ardendo sem doer. Estava no soneto que aprendi. Nunca esquecia. Tantos amores e nenhum.
Ouvia música a tarde toda. Quando acabava o disco, repetia. Versos lindos. Caetano, Noel, Batatinha, Caymmi, Benedito Lacerda, João do Vale e Monsueto ensinando o menino que eu era.
À noitinha, sentia o vazio no peito abrandar. Descer para o estômago. A confusão de sentimentos em que estava mergulhado sofria violento estímulo externo. O cheirinho da comida de Alice invadia o quarto sem pedir licença. Abandonava correndo o exílio voluntário. Fome. Não havia fossa que resistisse.