quarta-feira, setembro 26, 2007

Auto-retrato

A MEG encomendou, eu obedeço.
*
Preferiria ter nascido em outro país mas, em 1954, pariram-me no Rio de Janeiro. Cidade maravilhosa remota. Lembrança de férias passadas em casas de parentes que finaram ou mudaram de endereço. Ruas do Leblon, amendoeiras espalhando folhas pelo chão das calçadas que margeavam um canal bonito.
Vivo em São Paulo desde muito pequeno, aqui me entendi por gente sendo, portanto, paulista por adoção. Gosto de Pinheiros e dos ipês que tingem de amarelo as ruas em determinadas épocas do ano, já não se consegue determinar quando.
Torço pelo Santos.
Procuro ser otimista, embora esteja cada vez mais difícil manter esse jeito de ser. Já fui mais alegre do que sou. Irrito-me fácil. Não gosto de vizinhos, barulho de qualquer espécie, aglomerados de gente. Falta de educação e de sensibilidade tiram-me do sério, perco completamente os modos. Não bebo, não fumo, pratico esporte. Tenho pavor da morte. Se algum dia morrer será contra a minha vontade.
Bem casado.
Atrai-me o número quatro.
Fico muito feliz na mesa. Comilão, adoro pratos com molhos e risotos. Tudo que leva arroz. Doces feitos com ovos; tentadores. Luto para manter-me magro e com saúde.
A solidão não me assusta.
Sinto-me bem em livrarias. Leio muito, bem menos do que gostaria. Machado de Assis é meu escritor favorito. Cinema é paixão. Não me importaria de ficar paralizado o resto da vida em frente a uma tela. Ouço música e canto com alguma freqüência.
Sou vaidoso. Procuro vestir-me bem, importo-me com aparência.
A política me cansou. Já discuti com mais entusiasmo, acreditei.
Amo o passado, sou indiferente ao presente, temo o futuro.
Odeio telefone e celular.
Inverno, nada como o frio.
Ateu com poucos pecados.
Tenho alguns livros publicados. Tento escrever.

segunda-feira, setembro 24, 2007

Spring!

Quando eu era menino, querendo me entender por gente, ao ouvir falar em primavera imediatamente considerava-a de minha família. Poderia ser filha de algum tio distante. Tinha, porém, pouca curiosidade em conhecer essa prima. Da mesma forma que vovó traria, ao nos visitar, meus doces preferidos, ela viria com flores. Evoluí, é claro. Na época, projeto de homem, achava esse tipo de coisa feminino demais. Absolutamente fora de meu interesse.

sexta-feira, setembro 21, 2007

Modern World

Vendedor no portão. Limpa as caspas do ombro em um gesto amplo, conserta o nó da gravata, apoia a mala no chão, enxuga o suor da testa com o lenço e toca a campainha.
A menina larga o velocípede no chão do quintal, vem lá de trás correndo, curiosa, ver quem é. Chega arfando, demora para recuperar o fôlego. Ele:
- Sua mãe está?
Ela sorrindo marota, baixando a voz:
- Mamãe tá na terapia.

segunda-feira, setembro 17, 2007

Sabiá Malandro

Sabiá
Laranjeira,
Furta fruta
Da fruteira.

Meu caqui,
Bem-te-vi!

Sabiá
Carambola,
Prova parvo
Da gaiola.

E que mico,
Tico-tico!

Sabiá
Seringueiro,
Clama calma
No poleiro.

Eu espero,
Quero-quero!

Sabiá
Samambaia,
Rapta prata
Na tocaia.

Vê que mau,
Pica-pau!

Sabiá
Passarinho,
Torce treco
No biquinho.

Que horror,
Beija-flor!

quarta-feira, setembro 12, 2007

Bloody Bird!

Existe um sabiá morando entre as penas do meu travesseiro. Não sei quando ele se mudou. Talvez tenha escolhido a nova morada por ser mais quente, abrigada, quem poderia saber? Sei que está lá, tenho certeza. Todo dia, de manhã bem cedinho, começa a cantar. Faz um som lindo e inconveniente. Alto, muito forte. O barulho entra direto em meus ouvidos, ali vizinhos, sem pedir licença. Invade meu sono, acorda minha conseqüente falta de romantismo. Lembra, de forma insistente, que amanhã, quando estiver em minha cama, toda vez que voltar para aquele lugar de descanço, e alvorecer, haverei de ouvir cantar aquele sabiá. Nenhum gorjeia como ele cá, dentro do meu travesseiro. Agruras dessa terra que tem palmeiras, sabe-se lá onde, já que inexistem em minha rua. E é tanto o estardalhaço que essa ave estranha e maldita faz, tantos os chamados e respostas que recebe, parece conhecer os passarinhos de toda a vizinhança, que permaneço inquieto, lutando para recuperar o dormir perdido. E fico brigando, eu e ele, esse cantor histérico, até que outro barulho irritante arbitre o fim daquela noite. Desligo o despertador, jogo as cobertas para o lado, desisto. Como podem ver encanto nessa droga de canto?

segunda-feira, setembro 10, 2007

Gently Weeping

Hoje acordei querendo ser a guitarra do George Harrison. Gentilmente derramaria lágrimas como há muito não faço.
O primeiro pranto seria por saudades acumuladas, feridas abertas não cicatrizadas. Depois choraria o que não consegui fazer, tempo perdido, desperdiçado, jogado fora, menino preguiçoso desde sempre. Lamentaria então, baixinho, os momentos mal vividos onde, enredado em antecipações, todo expectativa, fui mais uma vez criança. Lastimaria o sono que não dormi, sonhos esbanjados em preocupações tolas. E com cuidado, para que não ouvissem esse carpir silente, derramaria algumas lágrimas de ódio e estaria, finalmente, bem mais feliz.
*
I look at the world and I notice it's turning
While my guitar gently weeps
With every mistake we must surely be learning
Still my guitar gently weeps
*
**********************(While My Guitar Gently Weeps - George Harrison)

quinta-feira, setembro 06, 2007

Bleeding Ghost

Naquele tempo andava pela rua uma velha. A mãe não gostava quando os ouvia falar assim dela.
- Uma senhora - corrigia.
- Uma bruxa - insistia o mais novo.
- Vocês precisam aprender a respeitar os mais velhos. Por que essa implicância?
Sem querer discutir, o mais velho mudamente concordava com o menor. Ainda lembrava da noite anterior. Dera de cara, na calçada, com aquilo. Branca. Cabelos de palha. Olhos mortos arregalados, fora de órbita. Vagando. Só faltava a vassoura. Correra para dentro com o coração aos pulos.
- Uma senhora bruxa - brincou.
Um dia o menino maior estava na sala lendo. Pix, o cachorro deles, devia ter visto alguma coisa que não gostara. Latia sem parar e rosnava, intercalando as duas maneiras mais comuns de se expressar com um breve silêncio gargarejado. Acabara desligando. Não havia nada de extraordinário naquela barulheira toda. O cão era assim. Irritado mesmo. No momento seguinte, o caçula entrou correndo:
- O Pix mordeu a perna da velha! - comunicou assustado. - E agora? Está a maior sangueira.
Gastaram dinheiro e desculpas. A mãe levou a senhora ao pronto-socorro. Teve que mostrar os atestados de vacina do bichinho. No fim, tudo bem. Os vizinhos entenderam o desatino do animal, que passou um tempo na coleira, preso, de castigo.
O cachorro virou herói para os meninos. Agora já não tinham bruxas no bairro. Esqueceram o medo. Quando dentinhos afiados furaram malignas varizes, num passe de mágica a assombração virou gente. De carne e osso. Apenas uma senhora. Onde é que já se viu fantasma sangrando?

segunda-feira, setembro 03, 2007

Ethically Questionable

Gosto de política. Evito abordar o tema aqui por várias razões. Recebo visita de amigos com posições distintas, credos diversos, considero falta de tato provocá-los com opiniões muitas vezes diferentes das deles. Sei, por experiência própria, que nossas convicções ao serem atingidas, ou confrontadas, provocam disposição de revide nem sempre saudável. Resumindo, acho esse espaço pouco adeqüado ao debate partidário. Prefiro preenchê-lo com textos um pouco mais literários.
Não posso, porém, como cidadão, sob o risco de parecer alienado, coisa que em absoluto não sou, furtar-me a falar, vez ou outra, sobre coisas que me parecem importantes no cotidiano do país.
Antes de mais nada preciso revelar uma disposição que vem crescendo dentro de mim. A de não mais agredir gratuitamente nosso presidente. Passei por um aprendizado voluntário, fruto de muita reflexão, onde concluí que o Lula, antes de mais nada, precisa ser respeitado. Todos aqueles que o elegeram merecem, por tabela, essa determinação interior. Deve fazer parte do jogo democrático que, tenho certeza, todos sabemos ser o melhor caminho, a aceitação da escolha da maioria. Mais do que isso, o respeito incondicional ao direito que o povo tem de optar. Qualquer tentativa de questionamento desse mandato ganho nas urnas, qualquer movimento que insinue usurpação ilegítma dessa vitória é coberto, tenho certeza, perigosamente, pelo manto negro do golpe.
Passo então, rapidamente, sem mais delongas, ao que me levou a todo esse preâmbulo. O discurso feito recentemente onde o nosso presidente afirma ser o PT um dos partidos mais éticos do país. O dicionário Houaiss revela, por extensão de sentido, que ética é conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade. Não considero apropriada, portanto, a relativação do conceito. Não existe mais ou menos ético, da mesma forma que inexiste mais ou menos ladrão.