segunda-feira, novembro 03, 2008

Driving Away

Apenas um vislumbre, troca fortuita de olhares, e as sombras anuviaram meu caminho. Cena fortíssima, mereceria ser fotografada. Pendurada, tombada para frente, ela ainda segurava o telefone, esticando a espiral enrolada em seu pescoço. Ali, no meio da rua, em plena marginal Pinheiros, sob a cúpula do orelhão, ajoelhada na calçada úmida, chorava em desespero. Os espasmos de sua dor mostraram-se em questão de segundos, num trocar de marchas. Imaginei coisas tantas e tamanhas, duras de suportar. Morte, desamor, solidão. Talvez doença na família, câncer de fígado. Dívida de jogo, vício, saudade. Cidadezinha do nordeste e um filho distante, criado longe. Ou será que, tão rápido quanto nos avistamos, aquela infelicidade crua e a minha curiosidade mesquinha, eu já tinha começado a escrever? Melhor seria ter parado o carro.

36 comentários:

Anônimo disse...

E nunca ficaremos sabendo! A Dúvida perdurara!
Bom texto.
Como sempre!

Boa semana,

valter ferraz disse...

Caco,
um namorado teria lhe dado o fora, talvez?

Claudio Boczon disse...

há tantos detalhes pelos quais passamos indiferentes que até parece esquecermos fazer parte de uma humanidade só, que padece dia a dia dos mesmos dramas comezinhos que nós.

nosso olhar distanciado cria redomas, e são poucos que param para quebrá-las.

genial teu texto.

GUGA ALAYON disse...

sensacional!
Quem sabe só um telefone ocupado...
abç

Anônimo disse...

O texto é um arraso!

Ricardo Rayol disse...

certas cenas urbanas são devastadoras.

Maria Helena disse...

Lord,
Jamais saberemos...entretanto se parasse o carro, talvez fosse vc a chorar depois. São várias as estratégias para assaltos e roubos, e essa poderia ser uma delas. Sê realista, é a melhor opção.
Valeu, virou um belo post.
Bjs

Anônimo disse...

Você me disse uma vez que ficasse atenta ao que acontece nas ruas, pois é lá que estão as melhores histórias. Pena que nossos melhores textos sejam os piores momentos de alguém. Nossos olhos são como uma máquina de filmar e nossas mãos (as suas, é claro) como um máquina de tear a tecer textos cotidianamente trabalhados.
abraço, garoto

Aninha Pontes disse...

É a realidade que vivemos.
Muitas dores, muito sofrimento.
Pena não podermos muitas vezes fazer absolutamente nada para amenizar partes dos sofrimentos alheios.
Todos nós gostamos de te ver assim, observando o que acontece ao seu redor.
Já não temos as suas viagens de metrô todos os dias, mas temos seus olhos atentos em uma cidade que tudo acontece, todos os dias.
Um beijo

Anônimo disse...

Caro Lord,

É sempre muito bom receber suas visitas, obrigada!

Eu sou muito observadora, e desde sempre fico tentando adivinhar o que se passa ma expressão das pessoas com as quais eu cruzo nos meus caminhos. Uma mania, um hábito que fa zparte de mim há tanto tempo que já não tento controlá-lo. Bom, tenho visto muitos rostos, expressões, como essa sua descrição, e a impressão que eu tenho é que a cada dia as pessoas estão mais e mais infelizes...triste isso não? Quero muito estar errada...

Uma semana iluminada para você, beijo, Cris

Anônimo disse...

Vale para Autor e Personagem,lema da Escola de Sagres e dos versos de Camões :"Navegar é preciso,viver não é preciso"
O sentido é de precisão,não de necessidade.A questão é interpretar corretamente.

O carro seguiu...
Günther.(Lord,espero ser bem acolhido em seu Blog.)

Janaina Amado disse...

Lord, seus textos pequeninos estão cada vez melhores. Gostei muito deste!

ana v. disse...

Querido Lord, mais arrepiante ainda do que o seu remorso por não ter parado o carro é a suspeita (quase certeza?) de que a cena podia ser somente uma estratégia de assalto... Fica a dúvida, a eterna dúvida. Em que estranho mundo vivemos, hein?

Seja como for, o seu texto é notável.

Um beijo

Lord Broken Pottery disse...

Eduardo,
Esse tipo de dúvida sempre perdura, e a gente perde oportunidades de ser mais gente.
Grande abraço

Valter,
Quem sabe... A probabilidade de um amor perdido é sempre grande.
Grande abraço

Claudio,
Você chegou exatamente onde eu queria chegar. Estamos cada vez mais deixando as redomas intactas. É o que mais me aflige.
Grande abraço

Guga,
Talvez um choro de alegria, vai saber...
Abraço, meu amigo

Maria,
Bom que você gostou. Elogio de escritora faz muito bem.
Beijo grande

Ricardo,
A palavra é bem esta: devastadora.
Grande abraço

Maria Helena,
Este é o nosso maior drama. A necessidade de fecharmos os olhos, bloquearmos a sensibilidade e sermos realistas. Perdemos, neste caminho, boa parte de nossa humanidade. Para mim é a miséria que a falta de segurança provoca.
Beijo grande

Denise,
Os melhores textos estão no inusitado, que pode ser bom ou ruim. A gente precisa treinar o olhar para ver o que há de diferente, sair do lugar comum. É claro que há uma boa parcela de imaginação no resultado final.
Grande beijo

Aninha,
Até que tenho andado de metrô. Em horários diferentes, mas tenho. Preciso voltar a escrever sobre estas viagens. Há sempre o que dizer sobre elas.
Beijo grande

Cris,
Será? Talvez seja espelho, reflexo de nossa própria tristeza. As pessoas mudam muito pouco, no atacado. Talvez seja uma questão mais pessoal.
Beijo grande

Günter,
Você é muito benvindo. Fico imensamente feliz com seu comentário. Particularmente tenho sentido precisão de viver.
Grande abraço

Jana, querida,
Fico muito feliz com seu comentário, Como disse lá em cima para a Maria, elogio de escritora me faz bem, aumenta a responsabilidade.
Beijo grande

Ana,
O remorso é bem por isto. Certa vergonha pela covardia. A falta de segurança das cidades, além de acabar com o nosso carinho pelas pessoas, tornando-nos menos solidários, transformou-nos em um bando de covardes individualistas.
Beijo grande

Anônimo disse...

A vida, a dor...Com ela se vai aprendendo,a dúvida se...Poderia acontecer da mesma forma...
Gostei muito

Beijitos

Anônimo disse...

Lord caco, meu amigo

"doença na família, câncer de fígado".
"Cidadezina do Nordeste e um filho distante, criado longe".
"Eu já tinha começado a escrever?"

Acho que você parou o carro.

Todo o carinho, e parabéns!

Vivina.

Nelsinho disse...

O dia a dia é um mal-me-quer de pequenas-grandes misérias e dramas que os filósofos desfolham às gargalhadas...

...só que eu, sofro junto!:(

Acho que você também, meu amigo!

Um abraço

Lord Broken Pottery disse...

Cõllybry,
Quem sabe? Talvez...
Abraço

Vivina,
Acho que você me conhece bem demais, tem as referências necessárias para entender melhor. Não parei o carro, mas continuei nele depois por muito tempo.
Beijo grande

Nelson,
Este tipo de sofrimento nos recomenda.
Grande abraço

Ordisi Raluz disse...

Uma dessas fotos mentais, o click que permanecerá indelevelmente gravado em nossas mentes, Lord.

Tenho as minhas também, porém não as saberia descrever tão bem como vc fez aqui.

Abraços fotográficos.

Anônimo disse...

Putzgrilo!!!!
Essa que é a pior (melhor) forma de prisão em que um escritor pode nos deixar.
Eu, particularmente, reparei na pessoa que disse (ah foi a Denise):
"Pena que nossos melhores textos sejam os piores momentos de alguém"

Essa visão é mais comum do que se imagina.
Mas o escrito não é mais o vivido. O contado não é mais o *puro fato* . Se fato há.
Essa é a magia da literatura, do bom escritor, principalmente do narador: é deixar o leitor entregue à sua própria consciência do que sente ao ler o que o escritor diz.

Agora, se o escritor tem esse estilo que nos induz a lidar com nossa própria maneira de reagir aí o cara é um *mestre*
Bravíssimo! Lord.
Um dos melhores textos do que se chama Formas Breves. E eu chamo de
*Pequeno Notável* hohoho!
Ufa!!!!!!

=-=-=
Olhe só nem vou reler, porque alguém vai me entender assim mesmo e se eu reler vou mudar.
Lord! Vou tí contá!
Meguita

Anônimo disse...

Lord, descrição perfeita. Parece que eu estava lá. O pior é que por menos que queiramos sempre achamos que poderíamos ter feito alguma coisa. E nos sentimos um pouco menos gente.
Abraços.

Lord Broken Pottery disse...

Ordisi,
Você é muito modesto. Claro que saberia descrever muito bem.
Grande abraço

Meguita, querida,
Um dia vou pegar todos estes textos e fazer um livro pequeno. Eu chamo estas poucas linhas de preguiça.
Beijo grande

Adelino,
É extamente com ando me sentindo. Cada vez menos gente.
Abração

Anônimo disse...

Certíssimo, Lord.
Claro que dentro de nós todos que aqui estamos, há essa não tão secreta esperança. Um livro.
E isso desde há muiito.

Hahaha, nem imagina o quanto foi importante, aquela er.. digamos anedota verídica do Grande Graça:-)))
beijo

Vou mandar um email e vc me diz, sim

Lord Broken Pottery disse...

Meg,
É verídica, sim.
Beijo

Anônimo disse...

Nunca sei se devo interromper uma dor explicita, e se o faço pela pessoa ou pra servir minha curiosidade...um abraço.

Blog do Beagle disse...

Invadir aquela dor? Jamais! Bjkª. Elza

Silvares disse...

É a questão que tantas vezes se coloca aos artistas: vampirizar ou ser um anjo? Eu, umas vezes vampirizo, outras armo-me em anjinho papudo. Na verdade o coração umas vezes lidera o corpo, outras vezes são os olhos e o cérebro a que estão ligados também entra em cena uma vez ou outra. Vivemos mais do que morremos até ao dia em que o objecto repleto de significados e potencialidades somos nós próprios. É ai que podemos compreender a dimensão da nossa humanidade, na franqueza do olhar com que avistamos a sombra da nossa alma, lá ao fundo.
Um abraço meu Lord.

Lord Broken Pottery disse...

Mani,
Eu também. Depois fico com vergonha desta curiosidade.
Beijo

Elza,
Concordo com você. Bem colocado, não podemos invadir certas dores.
Beijo

Silvares,
"...avistamos a sombra da nossa alma, lá no fundo."
Bonito, bem colocado!
Grande abraço

anna disse...

a dor, creio, tem tons e intensidades muito diferentes de uma peassoa para outra.

vai saber se não era porque o time dela foi prá segundona?

peri s.c. disse...

Cliks escritos da cidade

abraço

Marie Tourvel disse...

Ei, só agora entrei por aqui. Estou lendo aos poucos e gostando. A querida Meguita que me apresentou.
Um beijo pra você. :)

Léo Mariano disse...

olá Doutor Lord


Rapaz, belo texto sobre seu avô, seu pai, vc e a leitura. Um bonitão jogo de monta e desmonta escritor e leitor.

Faço coro com a Marie. Eita Meg, né não!

abs :D

Anônimo disse...

Querido Lord:
Você foi citado no blog Dito Assim,onde coincidentemente soube de sua gloriosa hereditariedade.
Abraços
Günther.

Lord Broken Pottery disse...

Günter, meu amigo,
Legal saber que você foi aluno do meu pai. Se o mundo é pequeno, a blogosfera talvez seja menor. Sempre tive curiosidade em saber como seria o velho em sala de aula. Em casa, momentos de auto-crítica, ele revelava que tratava os alunos com firmeza, dizia-se bravo. Será?
Grande abraço

Anônimo disse...

Em nosso caso não.Nossa turma era à noite e quem não trabalhava de dia,cursava outra universidade,como era meu caso.As aulas fluíam,descansadamente com comentários e análises ,digo assim,
integração e troca entre entrevistado e platéia.Ninguém perdia as aulas dêle.Fui um privilegiado.
Günther.

Lord Broken Pottery disse...

Günter,
Legal saber. Ver você falando assim, me deu uma puta saudade dele.
Grande abraço