quinta-feira, dezembro 24, 2009

Atribulações de Papai Noel

Graciliano Ramos Dez/1939
*
Batida meia-noite, pingados os primeiros minutos de 25 de dezembro, Papai Noel estirou o braço, apertou na parede o botão do comutador, espreguiçou-se e, chateado, bocejando, sentou-se na cama. A luz da lâmpada iluminou-lhe a cara vermelha e raspada, as sobrancelhas brancas, a calva brilhante.
Ainda uma vez aquela obrigação anual e cacete de enfeitar-se, deixar o cômodo apartamento do arranha-céu e largar-se pelas ruas, a oferecer brinquedos aos meninos. Entrado em anos, começava a enjoar-se da profissão: desejava aposentar-se e fazia tempo que pedira um substituto.
Levantou-se, escancarando a boca, exibindo a brancura sã dos dentes postiços. Dirigiu-se ao banheiro, deitou pasta de dente na escova, ficou algum tempo ocupado com a higiene.
Voltou enxugando-se, os beiços contraídos pelo gosto excitante do dentifrício. Tirou o pijama, vestiu a camisa e as cuecas, arreliado, lançando um olhar rancoroso ao calendário que se pendurava por cima da mesa, junto a um crayon de Portinari. Meteu-se na roupa encarnada, ajeitou a gola de arminho ao espelho e calçou as botas, resmungando: por que era que o Estado Novo não lhe suprimia as funções, conservando-lhe os vencimentos?
Enquanto pensava em redigir algumas notas sobre a reorganização do serviço, pregou a barba na cara descontente, arrumou no crânio o chinó, tomou o cajado, foi ao quarto vizinho e atirou às costas o enorme saco cheio de brinquedos. Veio de lá, capenga e corcunda, apagou a luz, saiu, trancou a porta, encaminhou-se ao elevador. O ascensorista, incomodado, àquela hora da noite, desceu-o rosnando.
Papai Noel pisou na calçada e, batendo solas no asfalto, andou em muitos bairros, entrou em muitas moradas, distribuindo convenientemente os objetos que levava.
Às criança ricas ofereceu bicicletas, álbuns de figuras, cavalos de rodas, bonecas falantes, automóveis e estradas de ferro em miniatura; às pobres deu espingardas de folha, apitos, balãozinhos, cornetas, bolas de borracha e outras miudezas da casa de CR$ 4,40. E todas as crianças ficaram satisfeitas: porque as primeiras não saberiam brincar com espingardas e cornetas, as segundas teriam receio de sujar os cavalos e os livros de figuras. A distribuição era razoável: não prejudicava hábitos adquiridos, não atentava contra a natural diferença que há entre os meninos, não estabelecia confusão no espírito deles.
- Porque enfim, refletia Papai Noel, apitos e gaitas valem uma fortuna para o garoto que não possui nada; automóveis e estradas de ferro pouco interesse despertam no pequeno que tem um quarto cheio de trapalhadas semelhantes. Assim, o que devemos fazer é dar coisas preciosas aos indivíduos que não precisam delas e deixar trastes sem valor aos necessitados. Acho que há muita sabedoria nisto.
*
trecho de Atribulações de Papai Noel, extraído do livro Linhas Tortas, Record, 10a Edição, 1983

domingo, novembro 22, 2009

Epílogos

Meu querido tio James Amado publicou, em 1965, as obras completas de Gregório de Matos. O grande poeta baiano nasceu em 1635. Dedico este poema ao meu amigo Jayme Serva, do Dito Assim, também ótimo versejador. Incrível como nosso país não muda, permanece ainda na época do Boca do Inferno.
.
Epílogos
.
Que falta nesta cidade?................Verdade
Que mais por sua desonra?...........Honra
Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha.
.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
.
Quem a pôs neste socrócio?..........Negócio
Quem causa tal perdição?.............Ambição
E o maior desta loucura?...............Usura.
.
Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
.
Quais são os seus doces objetos?....Pretos
Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos.
.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
.
Quem faz os círios mesquinhos?...Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas
Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos.
.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos.
.
E que justiça a resguarda?.............Bastarda
É grátis distribuída?......................Vendida
Que tem, que a todos assusta?.......Injusta.
.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que El-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
.
Que vai pela clerezia?..................Simonia
E pelos membros da Igreja?..........Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha.
.
Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.
.
E nos frades há manqueiras?.........Freiras
Em que ocupam os serões?............Sermões
Não se ocupam em disputas?.........Putas.
.
Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
.
O açúcar já se acabou?..................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu
Logo já convalesceu?.....................Morreu.
.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
.
A Câmara não acode?...................Não pode
Pois não tem todo o poder?...........Não quer
É que o governo a convence?........Não vence.
.
Que haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

segunda-feira, setembro 14, 2009

Stone Age

A Idade da Pedra não acabou por falta de pedras. Ouvi a frase outro dia e achei ótima. Ilustra bem a situação em que nos encontramos. Quando todos sabemos que é necessário, para que o mundo sobreviva ao aquecimento global, investir-se em energias limpas, não poluentes, corremos atrás de mais petróleo, com toda soberba que caracteriza nosso governo. Para variar estamos, mais uma vez, na contramão da história. Não dá pra engolir o Pré-sal, até por ser salgado demais, em todos os sentidos.

sábado, agosto 22, 2009

Taxi

Acabo de ler o delicioso Taxitramas, diário de um taxista, livro do Mauro Castro, conhecido e competente bloggeiro. Talvez por ser invejoso, querer escrever com a mesma fluência, arrisco também um pequeno relato.
Outro dia peguei um taxi. Corrida curta que o tráfego complicado transformou em oportunidade de prolongado bate-papo. O motorista era jovem e falava pelos cotovelos. A mesma reclamação de todos. O entusiasmo com que o município vem multando as infrações de trânsito em São Paulo tem sido tão grande, que as queixas aparecem em cada esquina. Contou-me sobre um médico conhecido dele. A figura comprou um carro e registrou como sendo da sogra, velhinha entrevada e desabilitada, para tentar fugir do acúmulo de pontos que acabaria por suspender-lhe a licença para conduzir o veículo. Achei a idéia boa, ainda não tinha pensado nela. No trajeto passamos por alguns radares. Agora em cada esquina existe um, com diversas funções: punir excesso de velocidade; verificar se o indivíduo está burlando o dia do rodízio; se ultrapassou o farol vermelho. É claro que como tudo em nosso grande país desimportante, o intuito não é educar, ensinar o povo a andar dentro de normas civilizadas. O negócio é faturar, encher os cofres da administração, autuar o cidadão. E então o Jurandir, nessa altura já sabia o nome do rapaz, fez-me uma confissão, em tom um pouco mais baixo. Contou-me que à noite, na madrugada fria paulistana, reune uns camaradas e sai detonando os delatores eletrônicos. Quebram o maior número possível, em um valente olho por olho, dente por dente. Fiquei calado ouvindo. Meu primeiro impulso foi condenar a atitude. Afinal são equipamentos caros, comprados com o dinheiro de nossos impostos. Mas já estávamos chegando ao meu destino. Paguei a corrida, nos despedimos. Desejou que eu fosse com Deus. Sempre acho engraçado quando falam assim. Dentro do elevador, senti vontade de quebrar a câmara que me vigiava.

sábado, agosto 08, 2009

Síndrome de Down

Já contei aqui outras vezes, quem me lê sabe que tenho um hábito bem paulista: freqüento padarias (ainda vou usar o trema por um tempinho). Além de ser fanático por pão, gosto de provar os mais variados, tenho enorme curiosidade em observar as pessoas. Sou mais ou menos assíduo em uma chamada La Plaza, que fica na avenida Sumaré. Tem um astral muito agradável, o atendimento é simpatissíssimo, as meninas que servem beijam a gente, tudo muito informal. Há também a vantagem de que as mesinhas ficam ao ar livre, de frente para uma praça. Normalmente tomo cafá da manhã lá, às vezes almoço. Hoje, estava saboreando o honesto filé à parmeggiana que fazem, quando uma cena me paralizou. Um casal jovem sentou-se à minha frente. Chegaram de mãos dadas, acomodaram-se, pediram refrigerantes. Os dois tinham síndrome de Down e usavam aliança na mão esquerda, mostravam-se bem carinhosos entre si, casados. Só mesmo em Sampa. Alguém já tentou calcular a probabilidade deste casório acontecer? Seria legal pedir para a minha antiga professora Albanezi, craque na matemática, temida no Dante Alighieri, calcular. Lembrei-me também de minhas aulas de biologia no colégio, com o professor Cezar: trissomia do cromossoma vinte e um. Mas quem disse que amor precisa de ciência?

quarta-feira, agosto 05, 2009

Break On Through

Tenho saudade da minha juventude. A gente transgredia, quebrava regras, não compactuava, morria se fosse preciso. E era gostoso poder desaparecer, contestar, arriscar o pescoço até o limite da razão. Muitos de nós partiram para melhor coerentemente íntegros, plenos de idéias. Tínhamos o que dizer. Dava orgulho poder argumentar, discutir, ter fé nas palavras, crer no futuro impossível. Desafiávamos. Hoje os meninos são bonzinhos, verdadeiros santos. Fazem caridade e trabalham em ONGs.

quinta-feira, julho 30, 2009

Bullying

O menino ficou nu na frente do espelho. Fechado em seu quarto, procurou em cada pedaço da carne exposta. Olhou debaixo dos arranhões, apalpou os vergões, seguiu com o dedo a ferida purulenta mais antiga, a casca começando a se formar. Sentiu na boca o gosto amargo do coração machucado de morrer. Limpou do rosto, com a palma da mão cortada, o sangue diluído nas lágrimas. Engoliu um soluço que teimou em subir, invadindo a garganta rouca de gritos. E antes que o corpo se desfizesse, insistiu em buscar onde desligar a dor. Nada encontrou. Solitário, resolveu desistir. Abriu a janela e voou para longe dali, arrepiado de frio.

sexta-feira, julho 24, 2009

Reforma Ortográfica

- Cadê o seu chapeuzinho,
x
não me diga que perdeu?

x
- Quem, eu? Fui mais é roubado,
x
só me deixaram o nexo.

x
- Sigo agora meu voo,

x
estranhamente pelado,

x
saudoso do circunflexo.

segunda-feira, julho 20, 2009

Back To The Blog

Em uma de suas músicas Cazuza diz: "adoro um amor inventado". Outro dia peguei-me pensando nestes versos. Os bons poetas nos fazem refletir sobre as palavras. Não seria todo amor, antes de qualquer coisa, fruto de nossa imaginação? Creio que sim. Primeiro acreditamos que gostamos e somos correspondidos, encontramos então quem tenha a mesma fé com relação a nós mesmos e, inspirados, antecipamos em nossos corações as mais variadas alegrias: teremos a melhor transa, receberemos o mais belo sorriso, passearemos de mãos dadas, ouviremos, apaixonados, os sinos tocarem junto da mulher amada, até que morte nos separe. A emoção nos afastando da realidade, plenos de expectativas criadas e recriadas, felizes. O bom do amor é que é irreal em sua origem. E permanece, para sempre, se for verdadeiro, inventado, e inventando-se.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Toys

No quintal enluarado os brinquedos esquecidos refletem sombras prateadas e a tristeza do abandono contrasta com a alegria que trouxeram durante o dia para os meninos encantados daquela casa esguia perdida no meio do quarteirão prensado entre as duas ruas mais importantes daquele bairro longínquo perdido no meio da cidade onde as crianças ainda sabem brincar e brincam tanto que suam gotinhas salgadas em forma de buços e correm e gritam e se cansam de montar quebra-cabeças em forma de mapa-múndi e pedalar velocípedes de plástico e jogar queimada rindo as bandeiras despregadas e pular corda até não aguentar mais de tanta diversão que há neste mundo vasto mundo de tantos Raimundos.

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Hold-up

Acabamos de presenciar um assalto. Rápido, organizado, às claras. Encostamos em um muro, aguardamos os acontecimentos. Enfadados e tranqüilos. Treinados, sabemos como lidar com estas coisas. Ao mesmo tempo em que, do outro lado da rua, a velhinha recolhia o cocô do poodle, três motoqueiros, revólveres na mão, cercaram um quarto, limparam-no, seguiram seu destino. Tudo muito corriqueiro, comezinho. Quando passei pelo infeliz, recém-subtraído, também calmo e preparado para a situação, inevitável, pude ouví-lo comunicando ao patrão os últimos acontecimentos, restara-lhe o celular. Somos mesmo civilizados.

sexta-feira, janeiro 23, 2009

Words Again

Implico com algumas palavras, dificilmente as utilizo. Por mim aproveitaria a revisão ortográfica para excluí-las de nosso vocabulário. Jamais me ouvirão dizer ou escrever que minha "esposa" fez alguma coisa. Pior só a versão masculina: "esposo". Usá-las é feio, brega, de profundo mau gosto. Digo "mulher", ou "marido", bem mais elegantes e sofisticados. Não gosto daquelas que entram na moda. Hoje em dia tudo é "emblemático", vivia muito bem antes das coisas serem assim. Gostam também de "clarificar" os pensamentos, no sentido de explicá-los, esclarecê-los. Para mim ficaria melhor em roupa. Caso fosse publicitário produzindo uma campanha diria, criando um neologismo, que determinado sabão em pó "clarifica" mais as roupas. Ainda vai demorar um tempo para que aceite o "deletar", mas aí já é uma outra longa história, que não gostaria de "estartar" agora.

sexta-feira, janeiro 16, 2009

Cinema

Gosto de ir ao cinema sozinho. Não programo com antecedência o que vou assistir. Prefiro ir a um local com muitas salas, chegar na hora que mais me agrada, entrar na primeira sessão que irá começar. É o tipo de programa que me cura de tudo. Acabo vendo coisas boas e ruins, mas o saldo é positivo. O bom sempre permanece e o descartável vai para o lixo, esqueço. Como repito esta rotina semanalmente, enfileirando sempre mais de um filme, consigo manter-me atualizado com o que está passando. Além disso, à noite, antes de dormir, diariamente, escolho mais unzinho na televisão. Vício, paixão, não sei definir. Enquanto estou alí, observando a vida fictícia que passa na tela, não me preocupo com nada. Gasto mais um tempo, igualmente prazeroso, escrevendo minhas próprias histórias. Outro dia, num estalo, dei-me conta de que talvez prefira a ficção à realidade. Será?

quarta-feira, janeiro 07, 2009

Quero-quero

Domingo acordei um pouco triste. Meu pai, caso existisse além de minhas lembranças, completaria oitenta anos. Meio sem saber a razão fui ao cemitério, costume que foi se espaçando, rareando, até tornar-se um ritual distante e meio sem sentido. Senti vontade de ir e obedeci ao impulso. Lá chegando gostei de ver a lápide bem cuidada, as placas de cobre dele e de minha avó brilhando, a grama bem aparada ao redor da pedra. Desconfiado, achava que podia estar jogando dinheiro fora ao pagar o serviço de manutenção. Como não freqüento o túmulo, acabo não fiscalizando os trabalhos. Fiz mau juízo da empresa responsável, ou será que eles capricharam por causa da data?
Um casal de quero-queros e seus dois filhotes bem bonitinhos, me recebeu com estardalhaço. Não gostaram de ver um intruso invadir sua privacidade silenciosa. É o que dá enterrar nossos entes queridos em campos relvados, habitat natural desses pássaros. Cada vez que tentava me aproximar, levar o vaso de flores ao seu destino, avançavam com as asas abertas, protetores. Agora, relembrando a cena, não consigo deixar de rir. Imagino que meu velho, se perguntando porque eu não havia trazido uma garrafa de uísque ao invés de flores, presente estranho para se dar a um alagoano, também deva ter se divertido. Na hora fiquei meio desarvorado, sem saber o que fazer. Minha sorte, porém, foi que um dos nenéns afastou-se dali e a família, sempre muito unida, foi atrás.
Pude então me emocionar um pouco, menos do que nas outras vezes, e conversar sobre literatura com o Ricardão. É como eu rezo, falo com ele sobre livros.