quarta-feira, maio 30, 2007

Old Words

Existem palavras que saem de moda, deixam de ser pronunciadas. Ficam esquecidas nos dicionários, verbetes meio lápides. Surgem empoeiradas nos livros antigos. Provocam riso quando no linguajar dos velhos. Por quê? Qual a causa desse ostracismo sem decreto e tão espontâneo? Supimpa, alhures, acolá, lábaro ou malfazejo, apenas para exemplificar. Sinto pena desses aglomerados de letras abandonados, significados vazios de entendimento, verdadeira sucata léxica.
Todos os dizem por escrito, aqueles que se dedicam ao jogo de paciência que é escolher a melhor maneira de expor o pensamento, esses que são amigos da letras e das combinações interessantes que formam, deveriam pensar um pouco nessa questão. As palavras que dizemos hoje têm um futuro semelhante ao nosso, terão cabelos brancos amanhã. Passarão.

sexta-feira, maio 25, 2007

Fat Ball

Camilo abriu o bar cedo como de costume. A cidade dormia quando seguiu rumo ao trabalho. Passou pela praia meio sonâmbulo, andar robotizado pela rotina. O ar fresco do mar veio saudá-lo. Viu o vermelho no horizonte prenunciando calor. Natureza e gente. Não muita. Fora de temporada, as areias recebiam menos colorido. Um ou outro biquíni, raros guarda-sóis. Nada que tingisse para valer a fartura disponível de claros. Pena.
Atendeu o primeiro pedido sem perceber. Recebeu o dinheiro e devolveu o troco segurando um bocejo. Observou o freguês partir pensativo. As idéias ainda lentas. Tudo em volta um pouco parado. Acordando aos pedacinhos. Esfregou um pano umedecido no mármore do balcão. O cheiro animou-o. Amarrou o avental na cintura considerando que o odor sempre associado à limpeza era apenas álcool, não o resultado garantido de ausência de sujeira. Riu sozinho, quanta bobagem!
Sintonizou o rádio já ligado antes. Noticiário esportivo. Dirceu, o farmacêutico, vinha para um cafezinho assim que terminava de abrir sua loja. Ficava um tempo proseando com o amigo.
- E aí, cabeça muito inchada?
- Tu gostas de vir me irritar logo cedo.
- Camilo, meu velho, você precisa aprender a perder.
- Tu és muito desaforado. O que se pode esperar de quem ganha o sustento aplicando injeção?
O português torcia pelo Santos. Quem ia ao bar divertia-se com a escolha. E Camilo argumentava agastado:
- Clube é coisa de coração. Vasco e Portuguesa não me dizem nada. Quando cá cheguei, nos idos de cinqüenta e oito, um time cativou-me: o alvinegro da Vila Belmiro.
- Você gosta é do Pelé – provocavam.
- Pois. O senhor Édson Arantes do Nascimento foi o melhor jogador que já vi em campo. Mas passou. Ficou o prazer de ver o time que é cá da praia.
Camilo era bom de papo. Ia-se ao bar Maria da Fonte por três motivos: cerveja gelada, a conversa e os salgadinhos que servia.
Padre Tenório também passava por lá. Perto do horário do almoço chegava para uma boquinha. Gostava de água com gás. Discutia diariamente com o português, que o tinha por conservador.
- Padre para mim tem que estar do lado dos pobres – provocava Camilo.
- Concordo. A caridade é uma de nossas incumbências.
- Que caridade, homem? Não é com esmola que se resolvem os problemas sociais.
- E o que você sugere?
- Que pare com essa coisa de aeróbica na igreja. Deixe isso para as academias.
- Você é contra? Olha que o povo gosta, a casa do Senhor tem estado cheia como nunca e muito alegre.
- Falta de respeito. Aquilo lá, pelo que me contam, virou uma gafieira.
- Quanta besteira! Eu é que sou conservador? Por que não aparece para ver o que está acontecendo?
- Não é possível, agradeço ao convite. Sabes que trabalho de domingo a domingo. Lá tenho tempo de ir em show?
Solteiro, o lusitano morava só. Teve algumas paixões violentas. Duraram pouco. Passava um tempo ouvindo Amália Rodrigues estendido no sofá da sala. Seguia os peixinhos no aquário com olhar romântico. Achava relaxante observá-los. Sonhava, então, com a mulata do dia. Depois sarava, largava o fado.
Ângela Maria, a última, deixara suas marcas. A moça interrompera o romance.
- Você não tem tempo para mim – reclamou chorosa.
Trocar um amor antigo por um novo. No fundo, era a proposta ouvida.
Gostava de estar atrás do balcão. Camilo olhou para um canto sombreado. Ali, no chão de cimento gelado, em cima de um grande saco de batatas, o bichano dormia largado, onde sempre costumava descansar quando aparecia. Enxugou as mãos no avental, infeliz. Um suspiro de saudade estremeceu o peito cabeludo.
À noite, radinho ligado sobre a mesa de cabeceira, luz apagada, ouviu o jogo. Deitado. O vento passando pelas janelas abertas e balançando as cortinas. A aflição da partida difícil em silêncio. Só. Assim gostava de ver futebol. Pelo rádio. Imaginando os lances. As jogadas desenvolvendo-se perfeitas sobre o travesseiro. Dribles que a televisão não mostrava. Estendido na cama, barriga proeminente para cima, os olhos fechados, acompanhou a disputa pelo gramado com riqueza de detalhes.
A bola escapou deslizando solta. Ângela Maria de rabo-de-cavalo levantou a bandeira, apontando o impedimento. Padre Tenório, vestido de preto, correu para o centro do gramado apitando. Dirceu, torcendo contra, riu sem parar, a cada lance perdido. A pelota, como um rato branco gordo, fugiu do gato em disparada, passando entre as pernas do goleiro.
- Gooooooooool!
O grito do locutor tirou-o do sono leve, cheio de sonhos. Não vibrou com a alegria de inaugurar o placar. Ângela Maria. Esticou o braço desligando o futebol. Levantou-se. Na sala, só de cuecas, colocou o cedê de sempre, sentando-se na poltrona mais confortável:
- Perdi minha gorduchinha.
Alguém lá fora gritou gol. Pimba!

terça-feira, maio 22, 2007

Crossing The Streets

Hoje saí de casa um pouco mais tarde, uma gripe forte afastou-me da academia, deixei de fazer meus exercícios. Dia de rodízio do carro, resolvi subir a rua Teodoro Sampaio à pé, até o metrô Clínicas. Deveria fazer isso mais vezes. É gostoso caminhar calmamente, observando as pessoas, o movimento, sentindo o frescor matinal no rosto.
Evito andar de ônibus. Embora goste muito das pessoas, sinta necessidade de observá-las, ouvir o que dizem, não me sinto bem trancado em aglomerados humanos. Rejeito o contato físico com estranhos, prefiro que evitem encostar em mim, me empurrem, pisem em meus pés. Com muito pouco sinto-me desrespeitado e perco a paciência. Como passou o tempo em que resolvia as coisas no grito, dizendo e ouvindo desaforos, procuro encontrar caminhos alternativos, onde a amplidão dos espaços preserve meu equilíbrio interior. Nesse sentido, andar me faz bem.
Curtos momentos de solidão, passos lentos, observo o mundo com curiosidade. A cidade acordando ao meu redor.
Dentro da padaria, café da manhã sendo providenciado, penso em como é importante um bom atendimento. Minha aproximação do balcão pareceu-me ser vista como intrusão. O olhar sonolento de condescendência da atendente é triste. Sinto a ausência do calor de um sorriso. Mecanicamente ela entrega, em câmera lenta, o pedido feito. Reparo na reforma que acabaram de fazer no ambiente. Tudo claro, recém pintado, espaços melhor aproveitados, televisão de plasma ligada. Frio, apesar. Como, ligeiro, meu pão com manteiga, bebo o café com leite. Vou embora calado, sem me despedir.
Retomo a ladeira. Em um ponto de ônibus, corpulenta loira aguarda condução. Encostada na parede de uma loja que ainda não abriu, volumosa barriga esparramando-se para fora da cintura das calças, ostenta um reluzente piercing vermelho no umbigo, combinando com a cor do batom. Pensa que o olhar que lhe dirijo é de aprovação. Traga a fumaça do cigarro com prazer.
Pouco adiante, a jovem caminhando à minha frente tropeça e cai de bruços. O susto faz com que demore um pouco a me aproximar. Pergunto sobre seu estado. Noto, com certo desconforto, que a mulher entrou em pânico. Reclama da dor que sente no joelho, chora, quer saber o que será de sua vida. Procuro alcalmá-la, eu próprio sem certeza do que fazer. Ela pede que a ajude a levantar-se. Pondero que se lesionou a perna, o esforço poderia ser pior, pergunto se não quer que chame o resgate. O desespero cresce ainda mais. Trantornada, insiste para que a levante. Sem outra alternativa, obedeço. Seguro-a pelos braços e ponho-a erecta. Ela firma os pés no chão, testa as condições do apoio, sorri, revela que dói menos do que imaginava, agradece, vai embora. Fico um tempo parado, acompanhando a travessia que ela faz da rua, pensando.
É quando um vulto passa em velocidade por mim. Deixa um odor acre no ar. Dirige-se rápido ao orelhão, saco de plástico preto debaixo do braço, e arranca violentamente o aparelho telefônico preso pela espiral metálica. Arremessa-o com força na cúpula arredondada, produzindo um forte estrondo. Grita um palavrão, olha para os lados enfurecido, louco, e continua correndo, mendigo.
Aproximo-me da entrada do metrô. Passo por todos os que dirigem-se ao hospital público. Velhos, crinças, adultos cansados, jovens médicos em aventais brancos, estetoscópios pendurados nos pescoços. Caminham apressados em direção aos seus compromissos. Giro a catraca, aguardo o trem na plataforma. Uma ternura enorme me invade. Gosto de gente.

segunda-feira, maio 21, 2007

News From Hell

Não é sempre que, imediatamente, nos damos conta de estar em frente a uma bela idéia. O novo, às vezes, por ser diferente, passa tão desapercebido que custamos a identificar qualidade nele, justamente por fugir aos padrões a que estamos acostumados.
Quando soube que o amigo Serbão, do Memórias Póstumas de Serbão Cubas , havia falecido e passaria a mandar suas postagens diretamente do inferno, achei um tanto quanto macabra a iniciativa. Parecia-me galhofa demais, pouco siso, como diria vovó.
Enganei-me redondamente. Divirto-me sobejamente lendo as aventuras dele. E o melhor de tudo é que tenho oportunidade de saber sobre muita gente boa que anda por lá. Alguns, mais afoitos, aproveitariam para me corrigir: se fosse bom não estaria nos domínios do Capeta. Talvez o conceito de bondade seja mais amplo do que consigamos imaginar. Já tive notícias de Paulo Francis e Raul Seixas, por exemplo.
Eu, que sempre tive medo da morte, ando até olhando para essa travessia com novos olhos. O mundo do Tinhoso parece ser divertido. Gente inteligente, poderei voltar a beber e fumar já que terei perdido a necessidade de viver bem e com saúde, boemia e altos papos madrugada a dentro. E, como possuo comprovada mediunidade, aproveito para falar com Serbão Cubas diretamente, dispensando a figura de Serbão Xavier como intérprete, para fazer uma listinha de pessoas de quem gostaria de ouvir notícias, colaborações para os diálogos infernais:
John Lennon e George Harrison (Estariam tocando juntos, como anda o seu inglês?)
Ibraim Sued (É quem faz a crônica social aí em cima?)
Noel Rosa (Continua tuberculoso?)
Getúlio Vargas (Nem precisei pensar. Se ele se matou está aí, com certeza, é só procurar.)
Pedro I (Esse negócio de adultério... E a Marquêsa de Santos?)
Sergio Porto (Se não encontrar pode ser o Stanislaw Ponte Preta.)
Barão de Itararé (Se não encontrar procure o Apparício Torelly.)
Henfil (E o irmão dele? Sempre sonho com a volta do irmão do Henfil.)
Acho que para início chega. Depois encomendo mais. Abraços cheios da vida.

sexta-feira, maio 18, 2007

Well-done Translations

Gosto quando um comentário de uma postagem me faz pensar.
Trocando impressões com o amigo Eduardo, do Varal de Idéias, sobre a qualidade literária de Paulo Coelho, entrei em um desses estados, muito próximo da loucura, que às vezes me acomete. Nesses momentos mergulho dentro de mim mesmo, esqueço o mundo ao redor e, em espécie de transe que não entendo, e portanto não consigo explicar, viajo pelo insondável de meu próprio raciocínio, a imaginação correndo louca atrás de um norte.
Antes de tudo preciso revelar que nunca li Paulo Coelho. Refreio aqui a afirmação de não pretender lê-lo para não parecer arrogante. Sei ser essa declaração quase obrigatória quando se trata do Mago. Todo intelectual que se preza evidencia não conhecer e não ter planos de entrar em contato com a obra dele. Pega bem. Parece-me, porém, pouco polido.
Li, alguém me disse, não sei direito de onde tirei essa revelação, que o autor de O Alquimista é melhor no exterior. Como assim? Calma. Dizem que as traduções da obra dele seriam tão bem feitas que tornariam o produto final melhor que o original. Possível? Particularmente acho viável, mas gostaria de ouvir outras opiniões. Outra coisa: é certo fazer isso? Ou seja, é correto melhorar um texto ao traduzí-lo a ponto de torná-lo melhor? Não haveria interferência demais. Penso, penso, não consigo concluir.

quarta-feira, maio 16, 2007

Sweet Memories

Reduzida a marcha, aos soluços, o motor empurrou ladeira acima. Lataria chocalhante. Amontoado semovente de ferros e parafusos. Frio. Inverno úmido em São Paulo. Ruas do bairro em silêncio. Manhã cinzenta. Ônibus. Lento itinerário. Parada. Ponto.

Cabeças penduradas. Bambas. Bobas. Caídas para trás. Arremessadas como bolas. Freio. Semáforo. Curvas. Olhos que se abrem para voltarem a fechar. Percurso. Rádio transístor a todo volume. Vicente Leporace lendo as manchetes. Dando o horário. Seis horas e quarenta e cinco minutos. Manchetes. Ponto.

Pesadelo. Terá gritado? O passageiro ao lado atento. Estranhamento no olhar. Vergonha. Sono é coisa íntima. Exposto. Tantos alí. Pesadelo. A professora azul de matemática. O verde quadro-negro. Risos amarelos na classe. Vermelho. Triste arco-íris. Colorido sonho. Chamada oral. Em pé ante a pedra. Zero. Reprovação. Segunda época. Científico adiado. Ginásio para sempre. Arrepio. Campainha. Ponto.

Outdoors. Aero-Willis anunciado. Fácil de adquirir. Garoa. Placa de vende-se. Buzinas. Avenida. Mulher grávida. Velho cede o lugar, solícito. Diálogo estabelecido. Perguntas. Quando vai ser? Qual o sexo? Câncer. Talvez Leão. Prefere menino ou menina? Deus dará. Que venha com saúde. Simpático. Vida. Mais um brasileirinho. Pendurado. Difícil equilíbrio. Curvado. Fim do começo. Início do fim. Contraste. Descendo trôpego. Ponto.

Broto legal! Uniforme. Saia xadrez. Meia três quartos. Colégio "Dante Alighieri". CDA bordado no bolso da camisa branca. Loira. Narizinho arrebitado. Cadernos no peito. Seios. E se eu fosse o caderninho? Difícil. Nenhum olhar. Lobo. Bobo. Ponto.

Cochilo. Professora Anna, outra vez. Fumando. Olhos semicerrados. Continental sem filtro. Matemática moderna. Vai à pidra. Com i mesmo. Italiana. Pensa num banco com três pé. Sem s. Os pé definem um prano. Com r no lugar do l. Sobressalto. Droga! Primeira aula. Vai à pidra. À pedra. À lousa. Fumaça jogada. Cuspida. O cigarro apontando. Circunferências imaginárias traçadas no ar. Medo real. Ponto.

Cataldo subindo. Colega. Amigo. Dupla caipira. Tonico e Tinoco. Estudou? Quase. Ferrado. Azar. Zero mais zero dividido por dois dá zero. Cola. Arrepio. Ela se chama Bruna. Como sabe? Que nariz! Ventinho no pescoço. Teimoso. Perto. Sete horas e cinco minutos. Cadernos pesados. Quilos. Parque Trianon. Bruna. Que pernas! Cobrador. Carteirinha. Passe escolar. Segunda-feira. Parada solicitada. Obrigatória. Ponto final.

terça-feira, maio 15, 2007

Killing Two Birds With One Stone

Outro dia ouvi um comentário impressionante. Minha irmã disse:
- Sou muito grata ao Harry Potter. Graças a ele, a Joana tomou gosto e passou a ler sem parar. Além disso, como não tem paciência de esperar a tradução brasileira, está lendo em inglês, evoluindo muito no idioma. O próximo volume, o último, já está encomendado.
Joana é minha sobrinha e tem doze anos. Não sei se já comentei aqui, mas sou fã assumido do bruxinho. Li os dois primeiros volumes por acaso. Ganhei de presente na Inglaterra, de professora amiga nossa, antes que virasse sucesso. Ela tinha lido e considerou que, por escrever para crianças e adolescentes, eu gostaria. Acertou na mosca.
J.K. Rowlling merece toda a fortuna alcançada e muito mais. Nos dias de hoje, existir alguém com o poder de afastar os meninos algum tempo, de todas as atrações eletrônicas idiotas, fazendo-os apaixonados por heróis impressos, é fato mágico. A escritora escocesa, não me interessa se produzindo literatura ou não, criou universo especial. Invejo a capacidade imaginativa quase delirante dela. Chego a me assustar com a força inventiva demonstrada. E eu, devorador contumaz de Monteiro Lobato quando criança, comemoro a existência de uma autora atual cumpridora do mesmo papel. O meu livro, o sétimo, também já está comprado.

segunda-feira, maio 14, 2007

Thinking Blogger Award

Dois caros amigos, a Meg do Sub Rosa (Flabbergasted) e o Eduardo do Varal de Idéias presentearam-me com dois Thinking Blogger Award, que passo a ostentar no topo do blog. Significa que as coisas que venho escrevendo agradaram a eles. Agradeço, é claro, o carinho.
Agora vem a parte mais difícil. Tenho que escolher cinco blogs para cada indicação. Vamos aos dez, que não sou de fugir da raia :
Pronto, missão cumprida!

sexta-feira, maio 11, 2007

Wondering Soul

Não acredito em alma penada. Melhor, prefiro não acreditar, esforço-me para isso. Tenho relação de medo com as coisas que não entendo. Tudo o que é relativo ao espírito me assusta, inclusive as religiões, que exercem em mim espécie de fascínio. Temor reverencial. Certamente, antes de mais nada, por absoluta incapacidade de lidar com a morte, além de minha compreenção e aceitação.
Volta e meia ouço conversas, leio reportagens, assisto a filmes que tratam da existência de fantasmas como fatos corriqueiros. A intercomunicação entre dimensões diversas acontece então naturalmente, falecidos e viventes do nosso mundo trocando experiências tranqüilamente. Quase sempre, infelizmente, sou atraído de forma inapelável pelo argumento. Depois, com os raros cabelos que me restam em pé, vago pela noite insone, sem conseguir conciliar o sono.
E como tento fugir do tema, passando sempre ao largo, de forma consciente, dos pequenos indícios que o cotidiano oferece, tenho pouco a contar. Geralmente não reparo em indícios evidentes para a maioria. Vultos, ruídos, ventos gelados, coincidências, acabam encontrando respaldo na razão, consigo explicar.
Mas para toda regra há excessão. Aconteceu logo após o passamento de meu pai. Estava escrevendo e embatuquei com o uso de uma palavra. Caberia naquele contexto? Perdi a paciência e reclamei, em voz baixa, com o velho:
- Você bem que poderia me ajudar. Sempre escreveu melhor do que eu, está ocioso, sem fazer nada, o que custava entrar na minha cabeça e me ensinar?
Levantei e fui ao Aurélio. Naquela época ainda não havia dicionário online, capaz de agilizar a aborrecida pesquisa. Folheei o pesado tijolo, insatisfeito com a minha própria ignorância, louco para terminar logo com aquela inana. Achei o verbete e li o exemplo dado. Se estivéssemos no cinema a música agora estaria bem alta e seria dado um close na página. As letras dançaram sob os meus olhos. Quando percebi estava arrepiado da cabeça aos pés. Um susto enorme. Larguei o livro e saí correndo do escritório. Adivinhem quem tinha escrito o texto? Sim, meu pai. A citação havia sido extraída de um dos livros escritos por ele.

quinta-feira, maio 10, 2007

Food For Tought

Caetano Veloso é sem dúvida um cara instigante. Além do trabalho que realiza há anos como compositor e cantor, diz sempre alguma coisa que nos faz pensar. Certo ou errado, estimula o debate. Essa qualidade é para mim relevante, próxima das outras já citadas, as de artista.
Li recentemente comentário dele sobre a quantidade excessiva de canções. Será que haveria um limite? Poderíamos atingir um dia o estado de saturação? Estaremos fadados ao fim do novo?
Não pude deixar de me arrepiar com a afirmação. Lieratura, música, pintura, todas as artes, estariam fadadas ao fim. Os críticos e os próprios artistas decidiriam, em algum momento, que o melhor já havia sido criado. O novo seria considerado falta de modéstia, pretenção, ultraje à beleza já produzida. E já que andei falando em ciúme, ninguém mais escreveria versos como:
Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume
Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
Só vigia um ponto negro: o meu ciúme
O ciúme lançou sua flecha preta
se viu ferido justo na garganta
Quem nem alegre nem triste nem poeta
Entre Petrolina e Juazeiro canta
Velho Chico vens de Minas
De onde o oculto do mistério se escondeu
Sei que o levas todo em ti, não me ensinas
eu sou só, eu só, eu só, eu
Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Mas, na voz que canta tudo ainda arde
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê
Tanta gente canta, tanta gente cala
Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme

É o que acho desse pensamento. De alguma forma é monstruoso.

terça-feira, maio 08, 2007

The Pope Is Coming!

Já escrevi anteriormente que sou ateu. Faço parte, segundo pesquisa recente, dos 3% de brasileiros que desacreditam em Deus. Garantia de que meu lugar reservado no inferno terá espaço suficiente. Poderei curtir meu calor sossegado. Caso viva mais quarenta anos, coisa que a ciência parece garantir, e graças ao crescente aquecimento global, estarei habituado à temperatura que terei pela frente. Aliás, considero que a humanidade, consciente de seu inexorável destino, deixa nosso mundinho em banho-maria numa espécie de teste adaptativo. Sabe que o buraco é mais em baixo.
Falta um pouco de respeito à fé. Ontem, passou por mim um judeuzinho usando um quipá da Nike. Juro por Deus! Fez-me lembrar que existe ainda um nicho importante a ser explorado pelas fábricas de material esportivo: o das vestimentas e materiais religiosos. Batinas dry fit, ósteas Power Bar, energéticos bentos, sandálias franciscanas Adidas nas três pisadas: neutras, pronadoras e supinadoras, mitras da Puma, casulas Track & Field. Dá para se ganhar muito dinheiro com isso.
E falando em religião, logo receberemos Joseph Ratzinger. Sei que ele é muito sério, culto, tem dois doutorados em Santo Agostinho. Conheço também um pouco sobre a filosofia do padre e filósofo em questão. Para ele existem dois tipos de homens. Os que amam a si mesmo até o desprezo de Deus, os que amam a Deus até o desprezo de si próprios. A razão pode ser inferior ou superior. A primeira é representada pela ciência, a segunda por Deus. Só existe justiça no cristianismo. Como podemos ver, conceitos bastante atuais. O nosso Bento XVI é chegado nesse pensamento e, definitivamente, não é pop, ou fashion, nem gosta desse tipo de gracinha que andei escrevendo.
Que seja benvindo! Dizem que poderá usar vestimenta com temas da Amazônia na missa do dia 11 de maio. Elementos tipicamente nacionais como o guaraná e a vitória-régia estarão representados na roupa. Ficará, sem dúvida, elegante.

sexta-feira, maio 04, 2007

Dead Lines

Sinto frio toda vez em que acesso um blog abandonado. Para onde correram as palavras, onde meteu-se o dono? É como entrar em casa mal assombrada. Sonhos expostos, luzes acessas, um dia perdido no passado. Tudo pronto, arrumado, portas e janelas abertas. Pensamentos mofados. O que teria emudecido aquele sítio? Imagino mil histórias. Um vento gelado emana dos comentários amarelados, comidos pelo tempo. Ninguém.
Decido apagar tudo se chegar meu instante de desencanto. Não posso esquecer o que escrevi. Jamais deixarei linhas mortas ao relento, sem enterro digno.
Paro, olho as datas vencidas, postagens velhas, logo out dali. Não consigo ficar muito tempo. Tenho medo de lá estar sozinho.

quarta-feira, maio 02, 2007

Bargain

Manobra o carro no estacionamento do supermercado lotado. Antes de descer observa-se no espelho retrovisor, aprova o que vê. Estica o braço e pega a bolsa no banco de trás. Enfrenta o burburinho com calma, poderosa, ignorando as filas.
Empurrando o carrinho pára aqui e ali. Cuidadosa, observa atenta as datas de validade antes de escolher os produtos. Abastece sem pressa. Atende o celular, conversa animadamente, coquete. Que idade teria? Difícil adivinhar. Veste-se jovialmente, jeans e blusa curta, barriga quase à mostra. Jóias, perfume francês. Cabelos aloirados tingidos de forma profissional, maquiagem discreta na pele esticada por bisturi competente. O andar elegante equilibra-se sobre saltos de plataforma. Que idade teria?
Na seção dos dietéticos gasta mais tempo. Pão, adoçante, gelatina e barrinhas de cereais. Os olhos pintados passeiam confiantes e interessados, de rapina. Sorriem para o rapaz que corta os frios. Creme para o corpo todo e bronzeador fator de proteção 30. Ela continua. O anel prateado faísca no dedo polegar, dedos finos e esmaltados, vermelhos. Enquanto aguarda a carne no açougue atende outra ligação. Pequena borboleta no peito do pé direito, tatuada. Latinhas de cerveja para completar.
Terminando, dirige-se ao tumulto abafado dos que querem pagar. As filas espicharam mais um pouco. Apenas uma tem tamanho razoável, a dos idosos. Ergue a cabeça abrangendo todo o cenário. Um brilho estranho passeia por seu olhar, segundos de indecisão. Que idade teria? Suspira profundamente. Escolhe o caminho mais fácil.