quarta-feira, agosto 30, 2006

Remembering A Long Way Back

O passado veio me visitar. Como sempre faz chegou sem aviso, aproximando-se meio tímido, impondo-se. Os fatos apareceram do nada, ganharam cor na memória, materializando-se de tal maneira que, de repente, fiquei triste.
O meu vale não era verde. As noites, porém, divertidas. No bar de todo dia conversávamos. Bebíamos mais do que falávamos, sem esquecer de dizer, é claro, tudo o que havia para ser dito. Depois de assistirmos os últimos lançamentos, nos cinemas da redondeza, fazíamos nossa crítica. Todos, alcoolizadamente entendidos, elevávamos as vozes defendendo criativos pontos de vista. "Gritos e Sussurros", de Ingmar Bergman, surpreendeu a galera. Unanimidade. Mesmo os que não gostaram, provavelmente por não terem entendido, se calaram. Já com Pasolini, a coisa foi diferente. Esculhambei Porcile. Chico Baffa, interrompendo o tricô, apoiando as agulhas nos joelhos, procurou o cigarro no cinzeiro. Aspirou profundamente a fumaça e disse, sorrindo:
- Larga mão de ser preconceituoso!
O português, dono do estabelecimento, não se conformava. Difícil aceitar marmanjo fazendo casaquinhos no meio dos amigos. Tinha medo que afugentasse a freguesia. Gostávamos de chocar as pessoas.
Num dia muito frio, protegido por um cachecol de lã que ele mesmo fizera, mostrou sua coleção de long plays da Billie Holiday. Para mim um alumbramento. Meus horizontes musicais ampliaram-se drasticamente. Lembro-me até hoje de uma frase que li, atribuída a ela: "I'm always making a comeback but nobody ever tells me where I've been".
Era como me sentia na época.
Chico Baffa, sempre bem humorado, diverso, nos ensinou muito. Viveu pouco e deixou muita saudade.

terça-feira, agosto 29, 2006

You Are Fired!

Tenho visto maus exemplos na televisão. Embora exista uma grande confusão nas empresas com relação à maneira adeqüada de se tratar os funcionários, o que tem sido exibido nos reality shows é no mínimo um mau exemplo. Em tempos de metas apertadíssimas, ânsia desesperada por participações nos lucros, competição por fatias de um mercado dificílimo, ainda é o capital humano o diferencial capaz de alavancar os negócios, situando as companhias em patamares mais elevados.
O "Você está demitido!", tantas vezes veiculado, é uma aberração. Em primeiro lugar pela ameaça explícita. Não se trabalha assim. É evidente que todos sabemos da conseqüência imediata a que estamos sujeitos, quando não exercemos com a qualidade necessária nossas funções. No cotidiano, porém, esse fardo não é assim tão evidente. Além disso, nossos empregadores sabem que um bom ambiente é fundamental para os ganhos de produtividade. Não são bobos. Valorizam o trabalho em equipe. Incentivam a união entre as pessoas, o foco no resultado, o espírito de cooperação. Martelam em nossa cabeça toda sorte de conceitos para nos tranqüilizar: fazemos parte de um grupo vencedor, pertencemos a uma das melhores empresas para se trabalhar, o RH está sempre atento às nossas mínimas necessidades. E nos julgam pela performance, empurrando para que façamos cada vez mais, com menor custo.
Aí está o maior problema. Nem sempre quem produz mais é melhor funcionário. Discuto muito sobre isso. O que faz o grande trabalhador é o entusiasmo. O prazer em levantar diariamente, o orgulho em pertencer a uma organização, a facilidade no relacionamento com seus pares, a disposição em cooperar. O sentimento que aflora ao vestir-se a camisa de uma empresa é o carinho por ela, a alegria por integrar no seu mais puro significado: o de tornar inteiro, completo, incorporado, ser integrante. A performance é conseqüência desse estado. Quando aparece em estado bruto, muitas vezes, é acompanhada de egoísmo. Vejo muita gente difícil, com altos índices de produção. Isolam-se, esquivam-se do convívio com os colegas, viram máquinas. São, quase sempre, um calvário para seus gestores. As empresas, nem sempre, percebem essa contradição. Valorizam esses indivíduos problema.
Recentemente reencontrei um rapaz com quem trabalhei no ano passado. Na época a mulher dele estava com câncer. Um caso complicado, gente muito jovem, com um filhinho de dois anos. Lembro da conversa que tivemos. Combinamos que ele daria total prioridade à vida particular. Hoje, muito tempo depois, a esposa recuperada e com saúde, falou-me da importância que eu tive para ele naqueles dias tão difíceis. Declarou-se religioso e me contou que eu estava sempre em suas orações.
Acho que é por aí. A gestão tem de ser antes de tudo fraterna. Não pode gerir gente, quem não gosta de gente.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Knowing By Heart

No meu tempo de menino a gente aprendia um monte de coisas. Estudar História significava repetir as palavras na ordem em que apareciam nos livros, respeitando-se parágrafos, vírgulas, pontos, tudo direitinho, sem gaguejar. Repetíamos os fatos, as datas e os nomes.
Lembro de uma bronca que tomei ainda bem novinho. Deixei em branco Pedro Álvares Cabral numa questão. Fiquei de castigo. Nunca mais esqueci. Sei até hoje que em 1500 chegaram ao Brasil 13 caravelas lideradas por ele. Depois, em 26 de abril, foi celebrada a primeira missa. Que fomos Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, em 1511, após a descoberta do pau-brasil, passamos a ser Brasil.
E como conhecíamos a taboada, fazíamos as contas sem usar calculadoras. Todos eram capazes de citar os afluentes da margem direita do rio Amazonas: Javari; Juruá; Purus; Madeira; Tapajós e Xingu. Enumerar as preposições: a; ante; até; após; com; contra; de; desde; durante; para; perante; por...
O sistema solar, por exemplo, tinha nove planetas: Mercúrio; Vênus; Terra; Marte; Júpter; Saturno; Urano; Neptuno e Plutão. Tinha, não tem mais.
O cientistas perderam o respeito. O que fazemos com o conhecimento adqüirido com tanta dedicação, todo o esforço para decorar? Hoje Plutão deixa de ser planeta, amanhã os sapos deixam de ser batráqueos, as planárias platelmintos, assim não dá! Quem mandou tirar Plutão do time? Só porque ele é pequenininho?

quinta-feira, agosto 24, 2006

Open Mind

Aproximam-se as eleições. Breve estaremos escolhendo nossos candidatos. É sempre com renovado entusiasmo que vivo esses momentos. A herança deixada pelos tempos da ditadura, faz com que valorize muito a possibilidade de escolher quem vai me representar. Tenho boa memória. Não esqueço o quanto lutamos para recuperar esse direito. Considero heróis os que tombaram denunciando os crimes contra a democracia. Perco, portanto, a paciência quando ouço generalizações. Em todos os sentidos. Não aceito, por exemplo, os que pregam o voto nulo, sob a justificativa de que político, por definição, é corrupto. E faço aqui um parêntesis para explicar direito minha posição. Nada contra os que usam o voto nulo como protesto, forma legítima de expressão. O que não aceito é campanha a favor do anulamento. Existem, sim, candidatos honestos. É nossa responsabilidade aprender a escolhê-los. Nada justifica a omissão.
Outro fato que me chama atenção nessa época é a atuação dos artistas. Muitos se engajam em campanhas, declaram seus votos, lutam ostensivamente por suas escolhas. Admiráveis quanto ao comportamento apaixonado que assumem, cidadãos empenhados em ver um país melhor. Passíveis de censura quando usam a força de sua imagem, celebridades que são, como palco permanente, tirando vantagem da exposição constante a que estão sujeitos para fazer marketing eleitoral. Fico sempre em posição pouco confortável com relação a eles. Procuro então, de todas as maneiras, preservar a arte que produzem. Não é fácil. Difícil aceitar o trabalho de quem pensa diferente, apoia quem censuramos, aceita o que rejeitamos. Como ler o que escrevem, ouvir a música que fazem, assistir a peça que representam, sem lembrar do que disseram? É nossa obrigação.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Celebrity

O repórter pula na minha frente, interrompe meu caminho na Paulista. Enfia, sem pedir licença, o microfone na minha cara. Pergunta:
- Qual a celebridade que o senhor (adoro quando me chamam de senhor) gostaria de conhecer, conviver, passar um tempo junto?
Embatuco. Diabo de pergunta mais idiota! O inesperado faz com que me cale. Fico alguns segundos sem saber o que dizer, irritado com aquele instrumento tão fálico perto de mim.
O entrevistador resolve me ajudar:
- Um ator, atriz, alguém que o senhor (novamente senhor) veja diariamente na televisão e admire.
Sujeitinho mais estúpido! E eu tenho cara de quem se comove com quem anda fazendo sucesso na telinha? Gaguejo um pouco para ganhar tempo, cada vez mais embaraçado. Novamente recebo auxílio:
- Um político, um esportista, um escritor, alguém que tenha o seu respeito.
Melhorou, penso. Respondo que gosto do Gabriel García Márquez.
- Por quê?
Informo que ele escreve bem, falo de "Cem anos de solidão", elogio "O amor nos tempos do cólera", sigo por esse caminho quando sou outra vez interrompido, ainda na Paulista:
- E o contrário?
Ele então observa, sorrindo, minha cara de imbecil, e sempre solícito:
- Quem o senhor (diacho!) não convidaria, evitaria sobre todos os aspectos, despreza muito?
Aí ficou fácil. É sempre melhor falar mal. Disparo a metralhadora. Comento as últimas pesquisas eleitorais. Ainda estou falando quando o rapaz se afasta, abordando outro infeliz.

terça-feira, agosto 22, 2006

Tattoo Mark

Leio um texto que fala de saudade. Marcas que ficam tatuadas na alma. Lembranças que chegam pelo correio: cedê quase novo, pacote de biscoito, embalagem pequena de lavanda, dois sabonetes e um cartão postal. Emociono-me com a delicadeza do jesto relatado. Quem teria mandado? Não revelam. Talvez presente de mãe para filha.
Eu, que me sinto tantas vezes estrangeiro em meu país, consigo estar de fato longe. Sem jamais ter convivido com o mar, recebo o vento salgado no rosto, caminhando pelas praias de minha juventude. Totalmente identificado com a historinha contada.
Envelheço. Algumas poucas palavras combinadas, dispostas de forma conveniente, têm poder mágico sobre mim. Gosto de brincar com elas. Quando dizem o que gostaria de ter escrito, bem como tantas vezes não consigo, confundem meu sentimento. O bem e o mal disputam terreno. Prazer e inveja presentes.
Vejo as cenas como num filme. Sonho acordado. Escrever é preciso.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Praying Silently

Almoço sozinho. Não gosto de comer em silêncio, mastigando as idéias. O alimento cresce na boca indigesto, difícil de engolir.
Senta-se em minha frente um senhor grisalho também desacompanhado. Apoia a bandeja sobre a mesa. Aperta os olhos franzindo o senho e coloca as mãos na testa. Talvez esteja mal, cansado, alguma coisa doendo. Engano-me. Fica um tempo naquela posição. Os lábios movendo-se vagarosamente emitem pequenos e suaves estalos, delicados muxoxos. Termina a prece com um sinal da cruz distraído. Suspira profundamente livrando-se de boa quantidade de ar. Abre espaço para atacar o prato, subitamente interessado no feijão, ávido, talheres em punho.
Percebo gratidão pelo alimento. A cena é velha conhecida dos filmes americanos. Imagem que fora da tela grande, porém, me assusta.
Olho desconfiado para o que escolhi: escarola refogada, carne assada no molho, arroz integral, batatas coradas. Não houve gratidão antecipada, apenas cotidiano prazer apressado. O pão meu de cada dia.
Creio em mim, nada poderoso, criador de pequenas coisas entre o céu e a terra.

sexta-feira, agosto 18, 2006

Watching TV

Gosto de ficar parado na frente da televisão. É quando consigo relaxar, descansar, deixar o pensamento estacionado. A claridade que emana da tela tem a capacidade de me hipnotizar. Ali, naqueles momentos desperdiçados, nada é importante.
Assisto de tudo um pouco: esporte, telejornais, seriados novos, antigos e filmes. Canais abertos e pagos. Tenho que concordar, somos bons em novelas. Acompanho, sem preconceito, mais ou menos freqüentemente, dependendo da época. A eterna luta do bem contra o mal onde o primeiro vence no fim. Critico apenas a forma atual. Os bandidos ganham o tempo todo. Judiam, torturam, batem, fazem as piores safadezas com os mocinhos durante a maioria dos capítulos. Na última semana, antes da série de casamentos que sempre acontecem, os bonzinhos se dão bem. Pouquíssimo para um espírito vingativo como o meu.
Muito se fala e escreve sobre novelas. Alimentam muita gente: artistas, roteiristas, revistas especializadas e um canal, principalmente esse canal. Não acho justo. Monopólio é sempre duro de se encarar. Nada mais saudável do que concorrência. Recentemente uma outra estação entrou na parada. Contratou celebridades, caprichou, preparou-se para dividir espaço no terreno das soap operas. Não sei se está dando certo, embora torça a favor. É sempre bom ver o mercado de trabalho ampliado, ter opções de escolha, variar o cardápio. O público, porém, é conservador. Acostumou-se a ficar parado na frente da televisão.

quarta-feira, agosto 16, 2006

Manners

Hora do almoço e eu no restaurante de todo dia. Atrapalho-me na hora de sentar. Esbarro sem querer na cadeira de trás. Apoio a bandeja, volto-me e desculpo-me, sorrindo. Recebo um olhar rude de volta. A moça, muito séria, exibe um jesto impaciente. Faz pouco de meu embaraço, mostra que não gostou do tranco, sem o menor pudor.
Tento me afastar do incidente, mudar a direção das idéias. A comida em minha frente, porém, parece perder o sabor. Queimo por dentro. Quem aquela vadia pensa que é? Como ousa tratar-me daquele jeito? Desperdicei simpatia. Difícil ser pacato em cidade tão pouco afável. Procuro acalmar-me. Mastigo uma folha de alface, engulo um pedaço de bife, bebo um pouco do suco de maracujá. Tudo insosso.
Desisto de ser educado antecipando o prazer. Afasto a cadeira com certa violência. O impacto agora é bem mais forte. Vejo susto no rosto de nossa amiga. Exibo minha mais cortês amabilidade. Afasto-me ainda com fome.

terça-feira, agosto 15, 2006

We're Quite Secure

Amanhã viajaremos de avião. Estamos todos curiosos. Depois que adotaram as novas regras de segurança, tudo será novidade. O nosso caçula sempre que lembra afirma que vai ser engraçado. Demonstra uma alegria infantil que me diverte. Rindo o seu riso mais espremido solta um guincho, pondo a mão na boca, todo vermelho de excitação. O mais velho, adolescente, não para de sonhar. Imagina que terá, sentada na poltrona ao lado, uma gatinha, e os olhos dele brilham de ansiedade. Minha mulher entrou num regime bravo. Os quilos que emagreceu já estão bem visíveis. Se é que alguma coisa perdida pode ser notada. E eu estou confuso. Meus sentimentos, não muito claros, oscilam entre o desconforto e a perplexidade.
Nessa altura vocês devem querer saber quais são as tais medidas. Simples e lógico. Daqui para frente, depois dos últimos trágicos acontecimentos, as companhias de aviação inauguraram os naked flights. Ninguém mais viaja vestido. A condição necessária para o embarque do passageiro é a nudez total.
De noite, ao despir-me, observo-me constrangido. O que faço com meus pentelhos brancos?

segunda-feira, agosto 14, 2006

Snapshot

Também vou em festas, quando não consigo evitar. É muito divertido. Gente rindo e falando alto, música bombando a ponto de deixar qualquer cristão surdo, e um caminhão de comida. Na última em que fui estava previamente bem humorado. Prometi a mim mesmo que iria tentar me integrar, ser simpático, aproveitar aquela oportunidade maravilhosa de me sociabilizar com as pessoas. Minha analista, um dia antes, convencera-me de que seria o comportamento adeqüado. Se conseguisse relaxar, olhar direitinho para o tempo presente em volta de mim, sair do controle neurótico que sempre quero exercer sobre as coisas, certamente iria passar por momentos agradabilíssimos. Vesti uma roupa que fazia uma presença legal e fui à luta. Cheguei muito cedo, por volta de meia noite. A maioria, mais experiente, começaria a aparecer depois.
Procurando lembrar de sorrir comecei a conversar com as pessoas. Embora não conseguisse ouvir quase nada do que dissessem, meio que na base da intuição, concordei e discordei, simpaticamente seguro de mim. Imagino ter feito bonito papel já que a galera me queria em suas fotos. Máquinas das mais variadas marcas surgindo em todos os cantos. Difícil imaginar o número de pixels presentes. O dono da festa quis me registrar com os seus filhos. Para isso entrei numa espécie de fila. Primeiro esperamos que a cunhada fotografasse os meninos com os avós, depois com os primos, em seguida com os pais, com a cachorrinha, e então chegou minha vez. Como já tinha fixado a alegria no rosto com indevida antecedência, senti um pouquinho de câimbra no queixo. Depois um casal conhecido me convidou para posar junto com um grupo: os garotos, já não tão garotos, da escola. Tudo muito emocionante. Uma dezena de senhores abraçados, apoiando-se. Quando saboreava delicioso canapé de camarão puxaram-me pelo braço. Devo ter sido reproduzido mastigando.
Hoje em dia, felizmente, não perdemos mais nossos momentos emotivos. As nossas câmeras, democraticamente distribuídas, interrompendo, intrometendo-se, registram centenas, milhares de situações digitais inesquecíveis. As festas parecem-me mais divertidas. Fleches espocando, pessoas correndo para todo canto ajeitando os cabelos, retocando a maquiagem, naturalmente satisfeitas. Um barato!

sexta-feira, agosto 11, 2006

Departures

Ouvi certa vez de um professor de literatura que devemos evitar escrever sobre amor. O tema é desgastado, difícil dizer o que já não foi dito. Melhor falar, lembro bem do exemplo que deu, sobre um serrote. Pouco, ou quase nada, já se alinhavou sobre a ferramenta.
Não aprendi direito a lição. Escolho terrorismo como tema. Embatuco. Fico olhando o teclado sem saber para onde ir. Imagino o aeroporto de Heathrow, tão meu conhecido, em pandemônio. Policiais enormes, e como são grandes na Inglaterra, revistando meticulosamente todo mundo. O medo materializando-se em cada bagagem, palpável nos rostos aflitos, em estado sólido, contrastando com o líquido que não pode ser embarcado. É preciso evitar que as bombas escorram para dentro das aeronaves.
O nosso cotidiano é explosivo. Acordo com um estrondo no meio da noite. Mais uma agência voou. Readormeço sem paz.
Matar é preciso. Estamos perdendo a paciência. Precisamos andar mais rápido, pular etapas, atingir diretamente as pessoas, não apenas o meio ambiente.
Procuro e não encontro as causas. Não há justificativa no corpo infantil que aparece na foto, pendurado nos braços do pai, inerte. O rostinho acinzentado sem vida comove. Será que doeu?

quarta-feira, agosto 09, 2006

Past, Present and Future

O assunto foi tema de divã. De papo para o ar, que é a posição tradicional para se conversar com o analista, discorri longamente sobre o tema. Nada como um profissional. A melhor coisa que há nesse mundo de surdos é a certeza de ser ouvido. Ou quase, já que nada garante que o discípulo de Freud esteja acordado atrás de você. Já ouvi doido contar que no meio da mais triste lembrança, a mágoa como uma bola de golfe parada na garganta, e lágrimas prestes a saltarem dos olhos, ouviu frustrante ressonar, o sono comendo solto na poltrona de ouvinte. Palavras ao vento. Trauma difícil de curar. Ser rejeitado pelo próprio terapeuta, especialista pago para entender, acolher e gostar da gente.
Difícil perceber direito o presente. Celebro o passado, enfeito o futuro. Quando o cotidiano rola não tiro proveito. Viver agora eu deixo para depois, desde ontem. O momento é pobre, não dá para imaginar.

terça-feira, agosto 08, 2006

Calling Names

Não sou detalhista. Talvez, por isso mesmo, impressione-me tanto quando percebo a importância que certas coisas pequenas podem ter.
Em minha família, o anúncio de que a cegonha nos visitará é tratado de forma bastante curiosa. Há verdadeira orgia de nomes sugeridos. Todos sofrem de uma espécie de compulsão para o batismo. Somos, portanto, craques no assunto. Achamos que ninguém é capaz de ser melhor, possuir gosto mais refinado. O manual invisível que consultamos tem sempre a opção indicada, olhamos com desdém esnobe quem se afasta de nossas regras do bem escolher. A simplicidade é fundamental. Não é seara propícia para a invenções.
Todo esse preâmbulo para contar fato recente que aconteceu comigo. Encontrei antigo colega de trabalho. Na última ocasião em que nos víramos estava prestes a se casar. Agora, anos depois, perguntei como estava, se tinha filhos. Disse-me que sim, duas meninas. A mais velha, Isabele e a caçula, Gabriele. Agora voltemos aos detalhes. A diferença que uma letra, apenas uma letrinha pode fazer. Como é feio esse e no final! Vamos trocar por a? Isabela e Gabriela. Bem melhor, não acham?

quinta-feira, agosto 03, 2006

My Brolly

Mania é coisa que se tem, gosto de umbrelas. Sabiam que existe a palavra em português? O lord que há em mim adorou. Nunca mais falo guarda-chuva. Pois é, tenho vários. Carrego um pequeno, talvez por hábito, já que mal me cobre, na valise. É a garantia de que, na ocorrência de aguaceiro, manterei a cabeça seca, talvez só o cocuruto. No porta-malas mantenho um daqueles tipo barraca, abriga três pessoas folgadamente. Quando aberto é um pouco perigoso. Em caso de ventania corre-se o risco de repetir a cena do filme Mary Poppins, sair voando por aí. E vários outros, espalhados por todo lugar. Depois que os chinêses passaram a fabricar, comecei a adqüirir quase que na mesma velocidade. O preço é argumento forte. Como um intrumento tão bem elaborado, tão engenhosamente fabricado, pode ser tão barato? Mesmo que não resista a uma garoa fininha, brisa leve. Compro e vou guardando, armazenando, estocando, fazendo provisão.
É claro que tenho meu preferido! Trouxe do Reino Unido. Um trabalhão, por sinal. Duro convencer as autoridades que aquilo não era arma branca, podia seguir comigo no avião. Não logrei êxito. Precisei despachar com a bagagem, morrendo de preocupação. Chegou razoavelmente inteiro.
Deixo o meu brolly no trabalho. Apenas pelo prazer de provocar inveja nas pessoas. Quando permito e aceito que se aproximem dele, percebo o olhar de cobiça de todos. O cabo de madeira envernizada sempre provocando comentários. Dizem que é sólido, perfeito, verdadeira obra de arte. Outro dia um rapaz, visivelmente apaixonado pelo objeto, me pediu, meio encabulado:
- Quando você viajar novamente para a Inglaterra me traz um desses?
Sorri meu sorriso enigmático. Pode esperar sentado.

quarta-feira, agosto 02, 2006

Smile

Todo dia ele passa cambaleando. Segue rindo, tropeçando nas próprias pernas. Para, estufa o peito, respira fundo e continua. Às vezes cai na gargalhada. Fala com todo mundo como se fosse íntimo. O rosto escalavrado. Inchaços, manchas roxas, as bochechas rosadas. Já o vi, em mais de uma oportunidade, com o braço na tipóia. Judiado. E então se atrapalha, parece que esquece o caminho, curva o corpo todo para a direita, surfando uma onda imaginária, endireita-se para a esquerda, retomando o equilíbrio precário, resmunga alguma coisa. Manhãzinha, fim de tarde, parece estar sempre voltando. Sujo, razoavelmente vestido. Rindo, rindo muito.
Quem vê aquele sujeito trôpego, ri com ele. E gritam, aconselham do outro lado da calçada:
- Vai pra casa, Givanildo, é tarde!
E ele rindo, rindo muito.
- Você não toma jeito, Givanildo!
E ele rindo, rindo mais.
- Toma é cachaça!
Então cai na gargalhada, endireitando o corpo, segurando a barriga.
Quando dou por mim estou me divertindo também, achando graça. De repente meu sorriso congela no rosto, amarela. Cantarolo a música de Charles Chaplin:
Sorri,
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri,
Quanto tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador, sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri,
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz

terça-feira, agosto 01, 2006

There Is No Accounting For Tastes

Em casa meu pai sempre dizia que gosto é o que mais se discute. Cresci ouvindo essa afirmativa e não costumo negar minhas origens. Nada mais discutível e diferente do que o gosto das pessoas.
Tomo o desejum na padaria. Gosto do pão quentinho, da conversa dos balconistas aporrinhando uns aos outros, de encontrar as pessoas do bairro, mais ou menos conhecidas. Adoro ver os cachorros latindo injuriados, aguardando seus donos, do lado de fora. Quando termino levanto e vou embora, sem ter que lavar a louça. Belíssimo jeito de se começar o dia. É quando percebo, com mais intensidade, a diversidade. Impressionante como conseguimos ser diferentes. Servir a freguesia, cada vez mais, me parece um trabalho fantástico, supremo exercício de paciência. Ali, naqueles vinte minutos que gasto, percebo o quanto somos exigentes.
Pessoalmente, peço que me sirvam a mistura de café com leite cremosa, bem quente, nem forte, nem fraca, com pouca manteiga na bisnaga. Como estou lá diariamente, espero que conheçam minha preferência para que não tenha que explicá-la toda hora. Digamos que me considero um cliente especial.
Tem um velhinho que chega trazendo a própria geléia. Pede um pãozinho francês sem juízo (miolo) com cheiro de (pouca) manteiga, além de uma faca. A média dele é sem leite, o que significa apenas café. Já a mocinha que trabalha no centro, não muda o cardápio, uma canoa na França (pão francês sem miolo) simples (sem nada), e um copo de leite desnatado morno. E continuam as variações impossíveis. Média quente, quentíssima, morna, quase fria, com espuma, sem espuma, coada, clara, escura, normal, cremosa, com canela, sem canela. Pães de todos os tipos com requeijão, manteiga, uma fatia de queijo prato, só presunto, queijo branco, mortadela, margarina, na chapa, frio, torrado, bem torrado, torradíssimo. Todos, fregueses antigos como eu, gostam que conheçam de cor suas opções. Ofendem-se quando o funcionário idiota não lembra.
Hoje apareceu gente nova no pedaço. Uma senhora agasalhadíssima, estava muito frio, chamou o Roque de lado e pediu, sem perder o rebolado:
- Traga-me uma xávena (eu ouvi xávena) de chocolate bem quente e um pãozinho francês. Peça para por margarina em uma banda e manteiga na outra.
Levantei, paguei, e fui embora.