Reduzida a marcha, aos soluços, o motor empurrou ladeira acima. Lataria chocalhante. Amontoado semovente de ferros e parafusos. Frio. Inverno úmido em São Paulo. Ruas do bairro em silêncio. Manhã cinzenta. Ônibus. Lento itinerário. Parada. Ponto.
Cabeças penduradas. Bambas. Bobas. Caídas para trás. Arremessadas como bolas. Freio. Semáforo. Curvas. Olhos que se abrem para voltarem a fechar. Percurso. Rádio transístor a todo volume. Vicente Leporace lendo as manchetes. Dando o horário. Seis horas e quarenta e cinco minutos. Manchetes. Ponto.
Pesadelo. Terá gritado? O passageiro ao lado atento. Estranhamento no olhar. Vergonha. Sono é coisa íntima. Exposto. Tantos alí. Pesadelo. A professora azul de matemática. O verde quadro-negro. Risos amarelos na classe. Vermelho. Triste arco-íris. Colorido sonho. Chamada oral. Em pé ante a pedra. Zero. Reprovação. Segunda época. Científico adiado. Ginásio para sempre. Arrepio. Campainha. Ponto.
Outdoors. Aero-Willis anunciado. Fácil de adquirir. Garoa. Placa de vende-se. Buzinas. Avenida. Mulher grávida. Velho cede o lugar, solícito. Diálogo estabelecido. Perguntas. Quando vai ser? Qual o sexo? Câncer. Talvez Leão. Prefere menino ou menina? Deus dará. Que venha com saúde. Simpático. Vida. Mais um brasileirinho. Pendurado. Difícil equilíbrio. Curvado. Fim do começo. Início do fim. Contraste. Descendo trôpego. Ponto.
Broto legal! Uniforme. Saia xadrez. Meia três quartos. Colégio "Dante Alighieri". CDA bordado no bolso da camisa branca. Loira. Narizinho arrebitado. Cadernos no peito. Seios. E se eu fosse o caderninho? Difícil. Nenhum olhar. Lobo. Bobo. Ponto.
Cochilo. Professora Anna, outra vez. Fumando. Olhos semicerrados. Continental sem filtro. Matemática moderna. Vai à pidra. Com i mesmo. Italiana. Pensa num banco com três pé. Sem s. Os pé definem um prano. Com r no lugar do l. Sobressalto. Droga! Primeira aula. Vai à pidra. À pedra. À lousa. Fumaça jogada. Cuspida. O cigarro apontando. Circunferências imaginárias traçadas no ar. Medo real. Ponto.
Cataldo subindo. Colega. Amigo. Dupla caipira. Tonico e Tinoco. Estudou? Quase. Ferrado. Azar. Zero mais zero dividido por dois dá zero. Cola. Arrepio. Ela se chama Bruna. Como sabe? Que nariz! Ventinho no pescoço. Teimoso. Perto. Sete horas e cinco minutos. Cadernos pesados. Quilos. Parque Trianon. Bruna. Que pernas! Cobrador. Carteirinha. Passe escolar. Segunda-feira. Parada solicitada. Obrigatória. Ponto final.
27 comentários:
Lord, todo o texto denuncia uma época. O itinerário do ônibus. O sono matinal.A professora italiana. Saia xadrez da menina que usa meias três quartos. Cadernos levados colados ao peito. Desejo.Inocência e adolescencia combinam? Claro que sim, pois a malícia está em nossas cabeças.Matemática moderna, aposto como os livros eram do Scipione. Parque Trianon. Devia ser muito bom estudar ao lado do Trianon. Bruna, lindo nome para uma menina bonitinha. E tinham quase a minha idade. No outro extremo da cidade eu me batía com a minha timidez. Suava frio a cada chamada ao quadro. E tinha o professor Macahyba. Saudades.
Obrigado, meu amigo. Viajei "de grátis" agora.
Abração
Valter,
Bom que você tenha chegado primeiro, sonhado comigo. Você é meu irmão.
Abraço
Ah, ah, esse Valter! Não viajei porque não é do meu tempo, kkkkkkkkk!!
Ricardo, tenho pensado em trabalhar esta técnica com os meninos lá na Roda de leitura. Fiz até o projeto. O seu ficou sensacional. A primeira vez em que li um texto assim, foi na escola primária, hoje, fundamental. Achei bárbaro. Vou tentar com eles.
abraço, garoto
Denise,
Acho que deve dar um bom trabalho com os meninos. Até por ser mais simples, é só encadear as idéias. Sem dúvida vão gostar de ver que dá para contar uma história assim. Depois passo por lá para ver como ficou.
Obrigado pelo carinho de sempre.
Beijo
Denise,
Esqueci de dizer, se precisar usar o texto fique à vontade.
Beijo
Lord, Lord,
que texto bonito. Mas discordo, não é "só encadear as idéias". Escrever assim, de um jeito que parece fácil, é difícil. Tarefa pra poucos.
Beijo da
Vivina.
Vivina,
Obrigado. O texto faz parte da continuação do Computador Sentimental. Como não consegui ainda publicar, está cada vez mais difícil, vou mostrando aos pouquinhos. É fácil, a gaveta está cheia de rejeitados.
Beijão
Lord, PROFESSORA AZUL DE MATEMÁTICA! Só isso bastava! Lindo texto. Recordar é viver. Eu vivi!
Sem dúvida nenhuma, a leitura do texto, nos faz viajar, nos coloca cada um na posição e localem que viveu situação semelhante.
Não há como não voltar ao tempo e lembrar:
Um dia já fui "Bruna", outros já sonhei com meu cavalheiro, que nem sequer percebia a minha existência. Será?
Um beijo
Saudades dos brotos legais.
Que texto!
Gosto muito dos seus textos. Achei esse, retrô, narrador das pequenas mazelas cotidianas e com um lirismo, leve, sutil. Beijo.
vicente leporace. abre-se o baú. a memória me leva prô fusca. puta sono. meu pai me leva prá escola. sempre ouvindo o cara.
Eduardo,
Você deve ter tido aula com ela, a poderosa Albanesi.
Abração
Aninha,
É essa a intenção. Cada um tem seu ônibus, seu tempo quase esquecido.
Beijão
Peri,
Nem me fale...
Abração
Sibila,
Que legal! Também gosto muito dos seus comentários. Estamos quites.
Beijão
Anna,
Cuidado! Assim você revela a sua idade. Deixa isso comigo.
Beijão
Bem marcado. Sincopado.Toda a vírgula é ponto final. Aos meus (entupidos) ouvidos portugueses o texto vira samba! :-)
anos 70. eu estudei no Rodrigues Alves, da Paulista, e a perua escolar fazia este trajeto. seria a mesma do conto????
Serbão, o Lord ía de ônibus!
Texto e ônibus passeiam juntos. Breca, acelera. Anda. Pára. Sonha. Acorda. Como as lembranças. Bárbaro. abç
ele podia ter feito uma adaptação, licença poética... hehehehehe
Lord, tive sim. Albanesi. Mas os meus preferidos eram o Sodero, e a Olga ( uma baixinha, elétrica) de história.
Silvares,
É também o que sinto quando leio seus textos. Leve diferença na maneira de dizer, enriquecomento natural das frases, a língua bem dita. Bonito como um fado.
Grande abraço
Serbão,
Pode ser. Eu morava em Pinheiros. O ônibus vinha pela Teodoro Sampaio, lá em cima virava à direita na Dr. Arnaldo, seguia pela Paulista. Descia em frente ao Trianon e, contrariando sempre a orientação da escola, me dirigia ao colégio por dentro do parque. Era arriscado, perigoso, muito emocionante.
Abração
Valter.
Lord de araque, título comprado. Andei de ônibus à vida inteira. Quando casei, época de vacas magras, fui morar no Jardim Peri-Peri. Passava umas três horas horas por dia dentro de ônibus.
Abração
Guga,
Obrigado. Gosto de escrever, às vezes, reproduzindo as cenas, como quem pinta, pinceladas curtas, em flashs como aparece na memória.
Abração
Serbão,
Não é adaptação poética, não. O pequeno lord tinha muito pouco dinheiro no bolso. O dauphine do pai era o carro da família, usado para o velho ir trabalhar.
Abração
Eduardo,
A Olga, de história, gostava de tomar uma branquinha com a gente no Jomagová, o boteco da Peixoto Gomide. Morreu não faz muito tempo. Grande mulher! O Sotero, eu conheci, deu aula para o meu irmão. Bons tempos...
Abraço
Lord, obrigada! Vou usar mesmo! Quando estiver pronto, te aviso.
abraço, garoto
Denise,
Ótimo! Me sinto honrado.
Beijão
nostálgico na medida certa.;0)
Vivien,
Obrigado!
Beijo
À cada dia me aproximo mais deste seu texto pelo qual fiquei apaixonada.
Uma hora, acho, eu o apanho.
Por enauanto ele foge de mim.
São as associações, os flashes e a informação e o traveller ... e.
Um beijo, milord
Meg
Meg,
Fico muito feliz com essa paixão. É muito gostoso receber esse retorno tão positivo.
Beijão
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