sexta-feira, abril 27, 2007

Interview

Recentemente organizei na revista da UBE (União Brasileira dos Escritores) de São Paulo uma grande matéria sobre Graciliano Ramos. Nela saiu a entrevista imaginada que montei abaixo.


“... o artista deve procurar dizer a verdade.”


Quem não gostaria de entrevistar Graciliano Ramos? Já que isso não é mais possível, recorremos a sua obra. Das muitas páginas e idéias que deixou, surgiram as perguntas e respostas. Quando vimos, a entrevista estava pronta.


UBE: O escritor tem uma relação íntima com a memória. Muito do que se escreve vem de lá, do que é lembrado. É assim com o senhor?
GR: A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrá de uma porta. Ignoro onde o vi, quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho. Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram.

UBE: O senhor foi preso político, esteve na prisão sem ter sido julgado. Como encara, hoje, o episódio?
GR: As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.

UBE: Os críticos foram sempre generosos com sua obra, o que acha deles?
GR: A coisa mais fácil do mundo é fazer crítica, fiquem sabendo, principalmente crítica literária. Eu, pelo menos, acho facílimo. Retirem dali os chavões, galicismos e as tolices, e vejam o que resta...

UBE: O senhor escreve à mão. Como é ver a obra, depois, impressa?
GR: O senhor já leu Balzac? Perdoe-me se sou indiscreto. Já, hein? Nem podia deixar de ser assim. Pois talvez se lembre de que esse fidalgo francês, a páginas tantas de um de seus formidáveis livros, diz que um artigo impresso parece valer mais que o mesmo artigo manuscrito. E é assim mesmo, não acha? Dir-se-ia que os períodos ganham mais expressão, energia, graça, uma grande soma de vantagens, enfim. A beleza do tipo, os espaços em branco, os grifos – que coisas tentadoras!
Imagine-se a distância que vai entre uma tira ignobilmente coberta de caracteres infames, semeada de borrões, e a mesma tira exposta em uma coluna nitidamente impressa em ótimo papel. É caso até para o autor ficar um tanto desconfiado, como o ingênuo carpinteiro que viveu há muitos anos lá num recanto da Ásia, e perguntar a si mesmo se foi ele que fez aquilo.

UBE: Como vê o mundo moderno?
GR: Não é nenhuma novidade dizer que as necessidades de um homem hoje são coisas muito complexas. Antigamente, um cidadão vivia com duas ceroulas, três camisas, uma casa esburacada, um banco, uma rede, uma mesa, um pote, um curral de vacas, um tabaqueiro, e um lenço. Às vezes também possuía um chapéu de couro e um par de alpercatas. Era pouco. Entretanto, era quanto bastava para chegar-se aos noventa anos sem precisão de óculos. É verdade que naquele tempo ainda não havia o costume de ler coisas impressas, o que, segundo está provado, danifica a vista de forma assustadora. Cada vez vamos ficando mais estragados dos olhos na flor da idade. A continuarem as coisas assim, não estará longe o dia em que as crianças já nascerão de pince-nez.

UBE: O senhor escreveu um livro chamado “Viagem”. Gosta de viajar?
GR: Em abril de 1952 embrenhei-me numa aventura singular: fui a Moscou e a outros lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta com vigor pela civilização cristã e ocidental. Nunca imaginei que tal coisa pudesse acontecer a um homem sedentário, resignado ao ônibus e ao bonde quando o movimento era indispensável. Absurda semelhante viagem – e quando me trataram dela, quase me zanguei. Faltavam-me recursos para realizá-la; a experiência me afirmava que não me deixariam sair do Brasil; e, para falar com franqueza, não me sentia disposto a mexer-me, abandonar a toca onde vivo. Recusei, pois, o convite, divagação insensata, julguei. Tudo aquilo era impossível. Mas uma série de acasos transformou a impossibilidade em dificuldade; esta se aplainou sem que eu tivesse feito o mínimo esforço, e achei-me em condições de percorrer terras estranhas, as malas arrumadas, os papéis em ordem, com todos os selos e carimbos. Tenho horror às casas desconhecidas. E falo pessimamente duas línguas estrangeiras. Estava decidido a não viajar; e, em conseqüência da firme decisão, encontrei-me um dia metido na encrenca voadora, o cinto amarrado, os cigarros inúteis, em obediência ao letreiro exigente aceso à porta da cabine.

UBE: O senhor é um romancista consagrado. Que conselho daria a quem está começando? Se alguém quisesse escrever, digamos, sobre o crime e a loucura, como deveria proceder?
GR: Romanceando por exemplo o crime e a loucura, está visto que ele deve visitar os seus heróis na cadeia e no hospício, mas, se quiser realizar obra completa, precisa conhecê-los antes de chegar aí, acompanhá-los na fábrica ou na loja, no escritório ou no campo de plantação. Necessariamente o ofício de seus homens deve ter contribuído para que as coisas se passassem desta ou daquela forma. É intuitivo que o negociante deitou fogo ao estabelecimento porque os lucros se reduziam. Digam-nos como se operou a redução. E o indivíduo que matou os filhos e deu um tiro na cabeça? De que se alimentava esse malvado, a que gênero de trabalho se dedicava? Certamente ele é um malvado. Mas a obrigação do romancista não é condenar nem perdoar a mavadez; é analisá-la, explicá-la. Sem ódios, sem idéias preconcebidas, que não somos moralistas. Estamos diante de um fato. Vamos estudá-lo friamente. Parece que este advérbio não será bem recebido. A frieza convém aos homens de ciência. O artista deve ser quente, exaltado. E mentiroso. Não sei por quê. Acho que o artista deve procurar dizer a verdade. Não a grande verdade, naturalmente. Pequenas verdades, essas que são nossas conhecidas.

quarta-feira, abril 25, 2007

Jealous Guys

Já escrevi algumas vezes que gosto de tomar café na padaria. É quando encontro tempo para relaxar e conversar com minha mulher, tranqüilamente, antes do trabalho. Um croissant quentinho com bastante manteiga, a média nem clara, nem escura, pelando, e o papo flui calmo, sem pressa, gostoso.
Hoje, no desejum, fui informado que um casal amigo nosso está grávido outra vez. A filha, uma gracinha de cinco anos, voltou a fazer xixi na cama assim que soube que ganharia um irmãozinho. Ante o meu comentário, em tom de brincadeira, que o fato demonstrava o quanto a humanidade é ridícula, minha mulher, rindo, quis saber se eu não me considerava humano.
Morro de pena de nossa fragilidade. Desde pequenos carregamos fardo pesado demais. Vivemos antecipando a possibilidade de perdermos quem amamos e nos assustando com a necessidade de dividirmos afeto. Descobrimos, derrotados, inimigos impossíveis. Nosso primeiro olhar é desconfiado. Irmãos nunca são benvindos. Na matemática de nossos sentimentos o amor não é uma abstração. Como corpo inteiro e exato diminui ao ser compartilhado. O mais interessante é que na criança a emoção é explícita, violenta, sem possibilidade de defesa. Dá pena ver o que faz com os bichinhos. Com o tempo, adultos, nos aperfeiçoamos em ocultar o que anda pelo coração. Pensamos que não sentimos o que sentimos. Guardamos em escaninhos dissimulados a dor congênita e fingimos que estamos bem. Somos, sim, ridiculamente ciumentos. Quem não for que atire a primeira pedra.

terça-feira, abril 24, 2007

Sustentability

Confesso a minha dificuldade com algumas palavras. É incrível a facilidade com que certos termos são adotados e, rapidamente, repetidos diariamente por todo mundo. A moda investindo na linguagem, sem cerimônia. Não fosse esse evidente esforço em parecer moderno, mais do que entender os conceitos emergentes, até que aceitaria de bom grado. Nada contra. O idioma é um organismo vivo e dinâmico. Incorpora excentricidades, atualiza-se, sempre criativo na tarefa de acompanhar o que é novo.
Há algum tempo venho reparando no uso que se dá ao termo sustentabilidade. Na ânsia de saírem bonito na foto, pessoas e empresas declaram-se comprometidas com essa filosofia. São porque são, completamente ignorantes do que afirmam ser, cegos no que tange ao real significado do discurso. Misturam sustentabilidade com desenvolvimento sustentável. Confundem sustentabilidade com sustentabilidade ecológica, alegremente superficiais.
Se não estivesse, na minha opinião, frente a frente com um conceito tão importante e bonito, deixaria barato. Estamos falando em prover o melhor para as pessoas e para o ambiente hoje, e no futuro indefinido, com a preocupação voltada para a continuidade dos aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais da sociedade humana. Temos portanto um conceito sistêmico que precisa ser compreendido e nunca banalizado. Será que as companhias que se declaram pela sustentabilidade defendem empreendimentos: ecologicamente corretos, economicamente viáveis, socialmente justos e culturalmente aceitos? Duvido.

sábado, abril 21, 2007

Smile

Todo dia ele passa cambaleando. Segue rindo, tropeçando nas próprias pernas. Para, estufa o peito, respira fundo e continua. Às vezes cai na gargalhada. Fala com todo mundo como se fosse íntimo. O rosto escalavrado. Inchaços, manchas roxas, as bochechas rosadas. Já o vi, em mais de uma oportunidade, com o braço na tipóia. Judiado. E então se atrapalha, parece que esquece o caminho, curva o corpo todo para a direita, surfando uma onda imaginária, endireita-se para a esquerda, retomando o equilíbrio precário, resmunga alguma coisa. Manhãzinha, fim de tarde, parece estar sempre voltando. Sujo, razoavelmente vestido. Rindo, rindo muito.
Quem vê aquele sujeito trôpego, ri com ele. E gritam, aconselham do outro lado da calçada:
- Vai pra casa, Givanildo, é tarde!
E ele rindo, rindo muito.
- Você não toma jeito, Givanildo!
E ele rindo, rindo mais.
- Toma é cachaça!
E ele então cai na gargalhada, endireitando o corpo, segurando a barriga.
Quando dou por mim estou me divertindo também, achando graça. De repente meu sorriso congela no rosto, amarela. Cantarolo a música de Charles Chaplin:

Sorri,
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
Sorri,
Quanto tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador, sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados, doridos
Sorri,
Vai mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz

quarta-feira, abril 18, 2007

National Anthem

O assunto é polêmico. Provavelmente muitos irão discordar. Ótimo, discutir é uma das melhores coisas para a nossa saúde. Desde que respeitemos certos limites, sem excessos que prejudiquem o coração, exercitar a argumentação faz bem. Tenho forte convicção de que acalorados debates combatem o mal de Alzeimer. Chequei a imaginar academias onde fôssemos para fortalecer o cérebro. Ao invés de esteiras, pesos, bicicletas e espelhos (principal aparelho de fortalecimento muscular), existiriam salas de pelejas. É claro que seriam mantidos os espelhos. Deve ser interessante nos analisarmos enquanto defendemos arduamente opiniões.
Entrando propriamente no assunto dessa postagem, declaro minha paixão por futebol. Peço àqueles que me visitam um pouquinho de paciência. Juro que não irei discorrer sobre o nobre esporte bretão.
Acompanhei atentamente a maioria dos jogos do campeonato paulista. Por determinação da Federação Paulista, não sei se por lei ou apenas média da entidade, o Hino Nacional tem antecedido os embates. É claro que não tocam inteiro, ninguém agüentaria ouvir a canção toda. Os importantes compositores Francisco Manoel da Silva e Joaquim Osório Duque Estrada que me perdoem, mas o hinozinho que fizeram é danado de ruim. Por definição, a maioria dos dicionários contempla, hino é um canto solene em honra da pátria. Onde está a solenidade da marcha Ouviram do Ipiranga? Como honrar a pátria se a maioria não entende o sentido das palavras? É curioso ver os jogadores perfilados, mão no peito, repetindo de olhos fechados, cheios de amor cívico, os versos que ignoram. Alguém aí sabe o que é "florão da América"?

terça-feira, abril 17, 2007

Stone-Blind

Ainda não tinha tentado pegar o metrô naquele horário. Quando cheguei na plataforma assustei-me com a quantidade de pessoas. Um certo sentimento claustrofóbico, que me invade nessas ocasiões, me fez relutar. Diminuí a velocidade dos passos, imagininando-me num daqueles vagões, transportado feito carga, apertado, abafado, suando. Antevi, infeliz, o mergulhar na escuridão dos túneis. Diabo!
Resolvi criar coragem. Pouco tempo disponível, acabaria me atrasando. Respirei fundo e entrei na fila. Aproximou-se uma senhora gorda, quadris enormes, tateando com uma bengala, completamente cega. Como acontece sempre, imediatamente, encontrou ajuda. Uma outra mulher, mais jovem, ofereceu-lhe o braço. Passaporte para o céu, pensei. Ficaram paradas, espremidas atrás de mim. Quando chegou o trem, em poucos segundos, fomos arrastados para dentro do carro mais próximo, sem nenhum esforço, submetidos à vontade da turba atrás de nós. E assim partimos.
- Qual o número da porta? - perguntou a deficiente visual.
- Como assim? - murmurou a santa.
- A porta, qual o número dela? - gritou a gordona.
Incrível como falava alto. Ante o inusitado da pergunta, fez-se um silêncio constrangedor. A acompanhante tentou outra vez, educada:
- Não entendi, não existe nenhum número.
Brandindo a bengala, irritada, olhos vazios parados, repetiu:
- Como você é capaz de não saber o número da porta? Não contou?
A outra, no mesmo tom, franzindo o cenho, respondeu:
- Para quê? Existem muitos vagões, muitas portas...
- Hora, para saber onde está, para enxergar onde ir, você parece boba!
Cada vez mais irritada, e menos santa, a mulher se transformou:
- Não sou boba, nem cega, não preciso contar as portas para saber onde descer.
Não se ouvia um pio no vagão.
- Não é cega, mas parece! - cuspiu a senhora, chacoalhando a bengala.
A outra, que era do bem, tentou se afastar, retirando o braço, não havia, porém, espaço. Seguiram juntas na estação final, no meio da multidão.

segunda-feira, abril 16, 2007

Direito Autoral

Em 19 de fevereiro de 1998, ainda no governo Fernando Henrique, entrou em vigor a lei número 9.610. No capítulo quinto, artigo 96, ficava alterado para setenta anos a duração dos direitos após morte do autor, contados a partir de primeiro de janeiro do ano subseqüente ao passamento do artista. Um ganho de dez anos sobre a lei antiga. Após esse período os familiares deixam de receber direitos autorais e a obra passa para domínio público.
Se considerarmos que em 2004, segundo o IBGE, a vida média de um brasileiro era de 70 anos, e levando-se em conta que ao morrer o autor tenha um filho de 45 e um neto de 20, o pecúlio recebido ficará na família apenas até a segunda geração. Problema para gente que muitas vezes depende desse recurso para viver e que o perde, já no fim da vida, em país onde as aposentadorias são minguadas.
O domínio público é um problema sério para as obras. Fora do âmbito familiar, do interesse e carinho que os laços de sangue acabam preservando, nem sempre a liberdade de publicação, restringindo-se o exemplo à literatura, faz bem ao livro. São muitos os casos de escritores que sumiram do mapa depois que herdeiros deixaram de cuidar de seus interesses. Será que Machado de Assis, talvez nosso maior escritor, é editado corretamente?
Ontem, o Estado de São Paulo, fez uma justa homenagem a Monteiro Lobato. Nele a neta, Joyce Campos Kornbluh, conta sobre as dificuldades que tiveram com a editora Brasiliense, que sempre manteve os direitos do escritor. Problemas como: edições com o mesmo aspecto visual desde a década de 70; falta de publicação dos livros no formato coleção; ausência de estoque mínimo de cada título; falta de planilhas sobre tiragens, vendas e pagamentos de direitos; erros nos demonstrativos, fizeram com que entrassem na justiça contra a editora. Conseguiram rescisão provisória do contrato e preparam reedição da obra. Não fosse o interesse da família, que vai além do simples negócio, talvez Monteiro Lobato estivesse fadado a desaparecer. O pior é que em 2018, o pai da Emília faleceu em 1948, fatalmente a família perderá o direito de exercer essa salutar vigilância.
Embora a lei seja relativamente nova, setenta anos ainda é pouco. Com a expectativa de vida do brasileiro médio crescendo, e em vista dos benefícios que normalmente os herdeiros trazem às obras, extendendo os cuidados além do lucro, penso que poderíamos começar a conversa em termos de cem anos. Quem dá mais?

sexta-feira, abril 13, 2007

Friday

Sexta-feira. Sempre foi meu dia preferido, desde a escola. Véspera de final de semana, um cineminha, diversão programada. Hoje à noite, finalmente, criarei coragem para fazer meu imposto de renda. Aborrecimento garantido. Mesmo trabalhando de graça cerca de cinco meses por ano para esse governo que não escolhi, provavelmente terei que pagar mais, ou restituir merreca. É das maiores injustiças que acontecem em nosso país. O que obtemos em troca? Nada. Educação de baixíssima qualidade, infra-estrutura sofrível, segurança risível (para não chorarmos) e saúde catastrófica. Ficando apenas nas obrigações de estado mais urgentes e negligenciadas.
Não consigo entender nosso povo. Os índices de "audiência" do presidente Lula continuam elevados. Todos os dias somos obrigados a nos deparar com algum impropério. O de hoje me deprimiu. Disse que o auge do ser humano é ser presidente da república. Jamais atingirei esse ápice ou terei direito à essa distinção "merecida". Como ser humano ficarei sempre devendo. Triste fim de um cidadão honesto.
Pensando bem acho que vou esperar mais um pouco. Ainda faltam muitos dias para o final de abril. Deixarei meu acerto com o leão para a última hora, como todo eleitor que se preza.

quinta-feira, abril 12, 2007

Snapshot

Também vou em festas, quando não consigo evitar. É muito divertido. Gente rindo e falando alto, música bombando a ponto de deixar qualquer cristão surdo, e um caminhão de comida. Na última em que fui estava previamente bem humorado. Prometi a mim mesmo que iria tentar me integrar, ser simpático, aproveitar aquela oportunidade maravilhosa de me sociabilizar com as pessoas. Minha analista, um dia antes, convencera-me de que seria o comportamento adeqüado. Se conseguisse relaxar, olhar direitinho para o tempo presente em volta de mim, sair do controle neurótico que sempre quero exercer sobre as coisas, certamente iria passar por momentos agradabilíssimos. Vesti uma roupa que fazia uma presença legal e fui à luta. Cheguei muito cedo, por volta de meia noite. A maioria, mais experiente, começaria a aparecer depois.
Procurando lembrar de sorrir comecei a conversar com as pessoas. Embora não conseguisse ouvir quase nada do que dissessem, meio que na base da intuição, concordei e discordei, simpaticamente seguro de mim. Imagino ter feito bonito papel já que a galera me queria em suas fotos. Máquinas das mais variadas marcas surgindo em todos os cantos. Difícil imaginar o número de pixels presentes. O dono da festa quis me registrar com os seus filhos. Para isso entrei numa espécie de fila. Primeiro esperamos que a cunhada fotografasse os meninos com os avós, depois com os primos, em seguida com os pais, com a cachorrinha, e então chegou minha vez. Como já tinha fixado a alegria no rosto com indevida antecedência, senti um pouquinho de câimbra no queixo. Depois um casal conhecido me convidou para posar junto com um grupo: os garotos, já não tão garotos, da escola. Tudo muito emocionante. Uma dezena de senhores abraçados, apoiando-se. Quando saboreava delicioso canapé de camarão puxaram-me pelo braço. Devo ter sido reproduzido mastigando.
Hoje em dia, felizmente, não perdemos mais nossos momentos emotivos. As nossas câmeras, democraticamente distribuídas, interrompendo, intrometendo-se, registram centenas, milhares de situações digitais inesquecíveis. As festas parecem-me mais divertidas. Fleches espocando, pessoas correndo para todo canto ajeitando os cabelos, retocando a maquiagem, naturalmente satisfeitas. Um barato!

quarta-feira, abril 11, 2007

Once Upon A Time

Era uma vez um menino que não queria escrever. Na família dele o avô, o pai, todo mundo era escritor. Considerava falta de imaginação seguir o mesmo rumo. Seria diferente, original, inauguraria um novo caminho estudando outra coisa, nada mais oposto ao terreno das letras do que números. E o menino fez uma enorme força para gostar deles. Decorou a taboada, aprendeu a fazer contas, mergulhou no mundo dos logarítmos e da trigonometria. Passou um período resolvendo equações, solucionando problemas, encontrando o xiz de muitas questões. Embora continuasse tendo melhores notas quando escrevia, insistiu na área de exatas. Com muito esforço deu conta do recado. Entrou para faculdade, concluiu o curso de Matemática, formou-se, foi trabalhar na área de informática.
Um dia o menino, já adulto, acordou triste. Percebeu que o mundo, de repente, sem a menor explicação, tinha se tornado um lugar incômodo. Foi quando começou a conversar, falar sobre o que sentia, coisas que nem sabia que sentia. De uma especialista recebeu um conselho: escreva um livro! E como já tinha a história guardada na cabeça, e uma vontade enorme de se ver livre dela, foi só passar para o papel e aproveitar a vida.
Deixou o livrinho um período escondido. Obras desconhecidas sempre ficam um tempo abandonadas em gavetas. Quase esqueceu que ele existia. Criou então coragem para mostrar ao pai. Qual seria a opinião dele? De uma coisa tinha certeza, seria sincero. O velho sempre fora verdadeiro demais com essas coisas. Ainda guardava a opinião que ele dera à respeito de um soneto juvenil que escrevera: uma droga, vá ler poesia!
Ficou uns dias aguardando o veredicto, ansioso. E então veio a aprovação, embora rigorosa. Dizia que tinha gostado mas que era suspeito. Mandaria o livro para uma escritora amiga avaliar.
E a história teve final feliz. A escritora Vivina de Assis Viana leu, aprovou e indicou o livro para a editora Atual editar. O livro recebeu prêmio e o menino, mesmo não querendo, virou escritor.

terça-feira, abril 10, 2007

Homesickness

Faço aqui uma pequena homenagem ao publicitário Jayme Serva, do Dito Assim .
A propaganda esteve presente em minha casa desde sempre. Meu pai, o publicitário Ricardo Ramos, apresentou-nos, de certa forma, ao ofício. Cedo conhecemos os jargões, quem era quem, vivemos, nos anos setenta e oitenta, muito do que aconteceu na profissão.
Logo aprendi a não dizer reclame. O termo deixava o velho irritado, era anúncio e estávamos conversados.
Meu foco maior é nas pessoas. Orígenes Lessa foi o início de tudo. Como gostava muito do escritor e mais tarde, adolescente, via Pasquim, virei fã do Ivan Lessa, fiquei feliz em conhecê-lo em minha casa, numa ocasião em que veio a São Paulo. Outro de quem não esqueço foi Geraldo Santos. Era famoso por seu charme pessoal, considerado um dos craques da época. Morreu bestamente. Tinha medo de dentista e preferiu fazer um tratamento com anestesia geral, não voltou.
Recentemente me correspondi com o Márcio Moreira. Ainda muito jovem, saído do Mackenzie, tornou-se um dos redatores do meu pai, já na McCann-Erickson. Freqüentava as nossas feijoadas de sábado. Na época queria ser escritor. Era como um filho mais velho na casa da rua Tamanás, onde morávamos. Conversávamos, ouvíamos música, vibrávamos com as letras das canções de protesto da época. Hoje o Márcio vive em Nova Iorque e é presidente da McCann. Tenho por ele um carinho enorme, de irmão.
Outro que estava sempre presente foi o Izacyl Guimarães Ferreira. Mais recentemente, via União Brasileira dos Escritores (UBE) , ele excelente poeta, estreitamos nosso contato.
O Armando Moura era o diretor de arte do velho. Por gostar de trabalhar com ele levou-o para a Tempo de Propaganda, que fundou com o Geraldo Tassinari e o Francisco Gracioso. Muito se falou, na época, sobre a fundação dessa agência. Na realidade um desejo do Sr. Bombril, como o chamávamos em família. Queria ser atendido por uma empresa brasileira. A Tempo nasceu com essa conta, bem grande na época, e mais a do banco Lar Chase, que foi junto. Uma perda grande para a McCann. Lembro quando o Zelão fez o jingle que cantávamos alegres: "Bombril, bombril, bombril, ninguém passa sem bombril...".
Quando paro para pensar os rostos vão passando em minha frente: Fontenelle, Mario Chamie, Julieta de Godoi Ladeira, Jayme Cortez, Edmundo Cotti, Renato Castelo Branco, meu tio, irmão de minha mãe, Raymundo Araújo, minha prima Marise Araújo, todos publicitários maravilhosos.

segunda-feira, abril 09, 2007

Politically Correct (PC)

Com relação ao vocabulário vigente as coisas ficaram pretas. Pronto, comecei mal. Não deveria usar a expressão pois conota racismo. Seria preferível ter dito que as coisas desandaram, não estão dando certo, mas nunca usar uma cor. É errado.
Pois é, tenho me atrapalhado bastante ultimamente. Muitas das palavras que sempre utilizei são agora desaconselhadas. Outro dia referí-me a um sujeito como xiita, pecado grave, a norma agora é usar radical. Dizer que um conservador é reacionário tornou-se ofensivo, que o doente é aidético nem pensar, escolha soropositivo, é mais elegante. A ordem é que nos adaptemos aos novos tempos. Estou tentando me enquadrar.
Li outro dia para minhas sobrinhas Branca de Neve e os Sete Portadores de Nanismo. Evito chamar alguém de palhaço para não ofender o profissional de entretenimento. Orientei o cara que pede esmolas em minha rua. Ele agora diz: "Esmola para um pequeno deficiente visual, pelo amor de Deus!". Ao meu amigo Marcão, que sempre chamei carinhosamente de negão, chamo agora de grande afro-descendente. E quando viajo para São João del Rei, em Minas, não deixo de visitar as esculturas do Portadorzinho de Deficiência Física. Eu chego lá!

quinta-feira, abril 05, 2007

O Que Me Deixa Feliz

A Aninha, de O Meu Jeito de Ser, passou a tarefa, pediu que escrevesse sobre o que me deixa bem. Sou feliz escrevendo, cada vez mais. É quando a realidade é só minha, sem interferência. Embora as personagens acabem criando vida e, muitas vezes nos levem por caminhos indesejados, o mundo da ficção me deixa mais calmo. Nele os imprevistos são controlados, as coisas acontecem segundo uma lógica estabelecida previamente, a segurança de um plano norteando cada parágrafo, universo perfeito.
Acho que talvez seja essa a chave da questão. Não gosto de surprêsas. O melhor dia para mim é igual ao dia anterior. Minhas ações não são muito pensadas. Ligo o automático e deixo a rotina me levar. Acordo, vou para academia, treino cerca de duas horas diárias, sigo para o trabalho, executo as tarefas mais urgentes, dou um tempo, "bloggeio" um pouco, almoço, trabalho, "bloggeio", trabalho, volto para casa, fico com minha mulher, janto, leio ou vejo televisão, durmo cedo. Basicamente minha semana é assim, e me agrada bastante. Nos intervalos rio, brinco, converso, sou um sujeito alegre quando não estou triste.
Nas férias prefiro viajar. O prazer começa no aeroporto. Gosto de chegar cedo e ficar vagando, antecipando o passeio, curtindo cada momento. Como me sinto melhor na Inglaterra, local onde deveria ter nascido, procuro ir para lá sempre que posso. Pena a moeda deles ser tão cara. Faço minha base em Hastings, cidade litorânea em East Sussex. É perambulando pela Europa, indo e vindo, circulando, respirando civilização, que vivo minha melhor vida.
Gosto de família, dos amigos, de comer bem, ir ao cinema, competir em corridas de rua, ser útil.
Falta-me muito pouco para ser completamente feliz. Gasto uns cobres com uma analista para me ajudar. É que existe em mim tristeza intrínseca, decorrente de relação terrívelmente mal resolvida com a morte. Não aceito o ignóbil destino de todos nós. Sofro por meu futuro inexorável e pelos entes queridos que já perdi e perderei. Morro de medo de morrer.

quarta-feira, abril 04, 2007

Where I've Been

O passado veio me visitar. Como sempre faz chegou sem aviso, aproximando-se meio tímido, impondo-se. Os fatos apareceram do nada, ganharam cor na memória, materializando-se de tal maneira que, de repente, fiquei triste.
O meu vale não era verde. As noites, porém, divertidas. No bar de todo dia conversávamos. Bebíamos mais do que falávamos, sem esquecer de dizer, é claro, tudo o que havia para ser dito. Depois de assistirmos os últimos lançamentos, nos cinemas da redondeza, fazíamos nossa crítica. Todos, alcoolizadamente entendidos, elevávamos as vozes defendendo criativos pontos de vista. "Gritos e Sussurros", de Ingmar Bergman, surpreendeu a galera. Unanimidade. Mesmo os que não gostaram, provavelmente por não terem entendido, se calaram. Já com Pasolini, a coisa foi diferente. Esculhambei Porcile. Chico Baffa, interrompendo o tricô, apoiando as agulhas nos joelhos, procurou o cigarro no cinzeiro. Aspirou profundamente a fumaça e disse, sorrindo:
- Larga mão de ser preconceituoso!
O português, dono do estabelecimento, não se conformava. Difícil aceitar marmanjo fazendo casaquinhos no meio dos amigos. Tinha medo que afugentasse a freguesia. Gostávamos de chocar as pessoas. Num dia muito frio, protegido por um cachecol de lã que ele mesmo fizera, mostrou sua coleção de long plays da Billie Holiday. Para mim um alumbramento. Meus horizontes musicais ampliaram-se drasticamente. Lembro-me até hoje de uma frase que li atribuída a ela: "I'm always making a comeback but nobody ever tells me where I've been".
Era como me sentia na época.
Chico Baffa, sempre bem humorado, diverso, nos ensinou muito. Viveu pouco e deixou muita saudade.

terça-feira, abril 03, 2007

Bad Trip

Em 1973 eu tinha dezenove anos. Após o fim de um longo namoro, estava livre para os agitos próprios daquela idade. Muita farra, muita loucura, nada de limites.
Vivíamos o auge da ditadura no país. Gente conhecida era presa, sumia, freqüentemente "se suicidava", incrível como as pessoas "se matavam" naquela época. Apesar disso era um mundo tranqüilo. Quando saía de casa meus pais não se preocupavam com violência. Diferentemente de hoje eram poucos os assaltos, raros os seqüestros, andávamos nas ruas até altas horas sem receio. Lembro que minha mãe passava o sermão de sempre. A recomendação básica era para que não falássemos sobre política nunca, e com ninguém. Depois disso retirava-se para dormir pois sabia que os filhos retornariam.
Sempre havia uma festa nos sábados. Cheguei na casa de meu amigo Massimo, aniversariante do dia, já com algumas cervejas na lata. Ele morava na Giovani Gronchi, perto do Morumbi, endereço considerado na época dos mais distantes. Já estavam todos lá: o Prandini, o Teto, a Mônica, a Eliana, o Douglas, meu irmão Rogério, a turma inteira. Muito som rolando, o Black Sabbath comendo solto.
Lembro-me que havia um lavabo na sala. Percebi que muitos do grupo entravam ao mesmo tempo nele. Já bastante bêbado fui ver o que era. Lá dentro um cigarro passava de mão em mão, um cheiro adocicado impregnando tudo em volta. Ainda não tinha experimentado mas fui em frente, dei algumas tragadas profundas. Saí dali para dançar mais, a música entrando por todos os poros.
Escondido, vi os soldados nazistas chegando. Os cachorros pastores alemães latiam e farejavam tudo ao redor. Afundei um pouco mais na lama, deixando apenas o nariz e os olhos de fora. Sabia que me procuravam. A tropa, comandada pelo delegado Fleury vestido de negro, suástica brilhando no braço, não me deixaria fugir daquela vez. Quieto, mal respirando para não chamar a atenção, só pensava em não ser aprisionado. Não tinha certeza de resistir ao interrogatório. Será que revelaria os nomes dos meus amigos sob tortura? Tinha dificuldade em entender o que falavam. As palavras gritadas como ordens no idioma germânico, lembravam-me o início do seriado Combate, ambientado na segunda guerra, sucesso da televisão. De repente achei que a casa cairia, um cão chegou muito perto, pude ver o linguão pendurado, quase sentir o seu hálito. Alguma coisa, porém, chamou-lhe a atenção, afastando-o. Afundei mais um pouco na lama, deixando apenas os olhos de fora. E então foram todos embora.
Parado em frente à porta da casa, após tocar a campainha, vi os meus amigos me olhando, rindo. O pai do Massimo pegou um esguicho e me lavou ali mesmo, no quintal. Estavam há horas me procurando, preocupados. A viagem, chamada na época de bad trip, levara-me para um terreno baldio próximo, ficara horas escondido dentro de um cano de esgoto.

segunda-feira, abril 02, 2007

As Drunk As A Skunk.

Sempre que me oferecem bebida, ou perguntam se bebo, repito que minha cota nessa encarnação, e na próxima, já está esgotada.
Passei boa parte de minha juventude bebendo. A compulsão por álcool era uma coisa assustadora. Acordava pensando em encher a cara. Gostava de bebidas fortes, destiladas. Dificilmente ia dormir em condições normais. Tenho uma visão em sépia da época, com a memória bastante alterada, os fatos aparecendo confusos, em câmara lenta. O que me lembro, para formar um todo, necessita de relatos testemunhais que me foram depois contados. Hoje, meu olhar sóbrio de mais de quinze anos sem beber, consegue encontrar graça nas situações que vivi.
Voltava da balada numa sexta-feira à noite. Faço aqui dois parêntesis. No primeiro desculpo-me por apropriar-me do termo balada, na época desconhecido. No segundo corrijo dia e horário. Na verdade já era madrugada de sábado, coisa de três, quatro horas da manhã. Através da Vila Madalena, seguindo pela rua Mourato Coelho, dirigia meu carro em condições lastimáveis. Ziguezagueando, dormitando no volante, perigosamente anestesiado por muitas caipirinhas, não percebi a rua bloqueada, feirantes montando suas barracas. Despreocupadamente lancei algumas pelos ares sem machucar, felizmente, e de maneira incrível, ninguém. Tinha naqueles dias, segundo palavras de minha mãe, um anjo da guarda eficientíssimo, além de incansável. Não precisa dizer que quase fui linchado. Palavrões, trancos, a faca do peixeiro apontando para minha barriga, um pé de alface sobre o capô, são alguns dos fragmentos de minhas lembrança etílicas da ocasião. Para encurtar a história, tive que usar o talão de cheques e saldar algumas dívidas adqüiridas naquele instante, só assim livrei-me do incômodo da revolta injusta daqueles trabalhadores matinais.
O que tenho de histórias desse tempo, todas muito divertidas, daria para escrever um livro. Já tenho até título: Bêbado como um Gambá!